sexta-feira, junho 30, 2023

CNEC 65/37 - 2/10

 

 

O tempo agora corre diferente.

Não registo horas ou dias, sinto o calor do sol de dia, o frio da noite e da chuva. Durmo na rua, como o que encontro no lixo.

No passado, alguém disse que fora uma sorte ter saído antes, uma sorte não estar ferida.

Sorte.

Essa palavra, sorte, não tem sentido.

Depois também houve quem dissesse que estava bêbada ou era louca.

Até que deixaram de me ver.

Quer me encolha num passeio, quer me arraste pelas ruas, sou invisível, talvez me contornem para evitar um toque indesejável, como se fosse uma pedra ou um plástico, lixo deixado no chão.

Já fui filha, mulher amante, mãe. Tive amigos, acho que sim, mas foi quando desapareceram os primeiros que parte de mim morreu.

Só estranhos encontro agora, estranha para eles sou.

Pai que me protegia, mãe que me cuidava, o meu amor maior e o mais pequenino, ainda tão criança.

Soube das suas mortes em intervalos de horas. A nossa casa ruiu e dos escombros apenas saíram os seus corpos sem vida.

Gritei, acho que sim. Havia outros gritos mais pungentes que os meus, seriam os meus?

Fiquei sem nada e o que mais queria era algo deles, um retrato, um escrito, um brinquedo. Quando durmo, acordo com os pesadelos de estar a esquecer-me de como eram as suas vozes, os seus traços. Que dor se vejo alguém parecido. Não são eles. Nunca mais serão eles.

Se não posso vê-los a eles, que não me veja ninguém, porque já não vivo, existo.

1 comentário:

  1. Sonia/soniafs.blogspot.com.brjunho 30, 2023 12:31 da tarde

    O ser humano consegue suportar a dor suprema e ainda continuar sua luta!

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