Natal
Por ela, o Natal podia já
ter passado. Ou podia nem haver.
Ficaria em casa, sozinha.
Como se fosse um dia igual aos outros. Era um dia igual aos outros.
A idade e a pandemia
também não aconselhavam a que fosse cear a casa de primas ou amigas. Sabia
também que muitas vezes era quando estava cercada de outras pessoas que se
sentia mais só. Entrava na casa de outros, querendo mostrar-se útil e
agradecida, e esconder a dor que a invadia.
Eram espaços não
familiares, embora não faltasse a árvore de Natal com presentes sobretudo para
as crianças, o bacalhau ou o polvo, o arroz doce ou a aletria, as rabanadas e o
vinho do Porto. Às vezes estalavam discussões entre adultos que agiam como
crianças. Ela não sabia onde se meter se a prima ou amiga acusavam os respectivos
maridos de não terem ligado o aquecimento ou comprado uns chocolates. Ela lia
nas queixas recriminações pelo cansaço com as preparações ou pela falta de
reconhecimento. Às vezes, essas trocas de palavras eram como chuva que limpava
o ar. Outras só carregavam o ambiente. Ela refugiava-se na contemplação das
crianças. Inocentes com decepções ou desgostos que passavam com a prenda ou um
doce.
Eram casas estranhas, mas
nelas havia vida.
Não os invejava, ficava
contente pelas primas e amigas terem família, marido, filhos e netos.
Simplesmente com ela já não era assim.
Casara jovem e não tiveram
filhos. Com os anos ela e o marido foram-se afastando. O divórcio não lhe
custou. Sentiu-se livre das tarefas que sem gosto por ele fazia e do peso da
sua presença. O trabalho e ajudar os pais mantiveram-na ocupada, até que os
dois morreram e se reformou.
Ia vivendo, mas nas
alturas festivas custava às vezes mais. A dor por cada perda passara a fazer
parte dela. Queria refugiar-se nos Natais felizes em que estava na sua casa com
a sua família. Queria ter-lhes dado mais valor enquanto os tinha. A culpa e a
saudade mexiam com ela. Percebia melhor agora desabafos da mãe no mesmo
sentido.
Por isso, por ela, podia
deixar de haver Natal.
Não esperava que aquele
ano fosse diferente do anterior. Ia ficar em casa. Trocaria mensagens de Feliz
Natal com as primas e amigas. Talvez alguma lhe ligasse. Teriam uma conversa
leve e breve e terminariam com o Feliz Natal.
Como nos outros dias ia
jantar cedo, um prato de sopa e uma fruta seriam suficientes, e teria a televisão
por companhia.
Tudo se passou como
previra, mas em vez da insónia que noutros dias a levava a deitar-se tarde
depois de assistir a sucessivos programas na televisão, teve sono cedo.
Deitou-se e sentiu o
calor e o conforto da cama.
Quando quase adormecia,
pareceu-lhe ouvir a voz do pai e sentiu o abraço da mãe. Naquela noite, o seu
sono foi feliz, aconchegada e quente, sentiu que, como quando era criança, tinha
perto os seus entes queridos.
O que julgou ouvir, o que
sentiu, fizeram também com que quando despertou, permanecesse adormecida a dor
e crescesse nela a esperança do reencontro e de um sentido.
Olhou pela janela e lá
fora esperava-a uma manhã de sol e era dia de Natal.
Sentido para a vida....sempre procuramos por um, sem perceber que para o termos temos que criá-lo.
ResponderEliminarBelo conto, amiga. Você tem na alma a tão rara compaixão e empatia pelas pessoas.
Lindo conto, Gábi. Amei a leitura.
ResponderEliminarMe identifiquei, porque eu meio que me sinto assim, como a protagonista.
Sinto que o que a sua amiga do comentário acima disse sobre você é verdade. Eu vejo em você compaixão pelas pessoas; posso dizer que eu já senti e já fui abrangida pela sua compaixão e busquei retribuir de forma igual ou semelhante. 🙂 Não sei se acredita em Deus e em Jesus Cristo, mas a compaixão que Jesus nos ensinou a ter.
O Natal está chegando...
Um grande abraço. 🌺🌹
~Cartas da Gleize. 💌
Que maravilha de conto, parabéns porque retrata a vida de muita gente só!
ResponderEliminarAs únicas celebrações que gosto é o dia do meu aniversário e do Natal.
Beijos e um bom dia