quinta-feira, março 25, 2021

Post 7996 - CNEC 54-26 - 1ª Jornada - 1/10 - O Segredo

 

 

Pode um segredo unir-nos

e definir quem somos.

 

Intervalo das aulas em tarde de Inverno.

Não há muito para fazer cá fora. Os rapazes jogam à bola. Têm brincadeiras brutas, com pontapés e lapadas uns aos outros. Em grupo são meio assustadores.

Então noto que não é com uma bola que jogam. Perto de mim jaz o corpo de uma boneca. Arrancaram-lhe a cabeça que lhes serve de bola. Ela parece-se com a minha boneca Joaninha. Já não brinco com ela - tenho dez anos, sou crescida para brincar com bonecas - mas deixo-a em cima da cama quando saio para a escola e gosto de a reencontrar quando regresso.  Foi o meu segredo para não ter medo de trovões nem de dormir no escuro. Não estava sozinha, porque ela estava comigo.

Não devem tê-la tirado a nenhuma menina, as funcionárias não o deixariam e não podemos trazer brinquedos para a escola.

Alguém tê-la-á deitado fora e eles encontraram-na. Parece-se com a Joaninha. Não é uma boneca cara. Não é daqueles que falam ou andam. Tem rosto e corpo de bebe. Devia ser abraçada e não pontapeada. Pego com cuidado no seu corpo. Queria ter a coragem de ir para o meio do jogo e salvá-la. Se tentasse dizer-lhes alguma coisa não me iam ouvir.

Começa a chover fininho e toca para dentro quando o Rui num pontapé a manda para as silvas. O Delfim que é baixinho e por isso muitas vezes não o escolhem para jogar, grita para os outros que irá buscar a bola. Todos vão para dentro, cá fora só ficamos os dois. Quero pedir-lhe a cabeça, mas não sei como.

Ele olha para mim e diz-me enquanto me a entrega: “esconde-a, será o nosso segredo”.

Baptizei-a Ana.

Afinal os rapazes não são assim tão maus.

 

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