quinta-feira, maio 30, 2019

Post 7086 - Desafio de Escrita 4/10 Carta



Mãe queria tanto estar contigo agora.
Nos meus sonhos estamos juntos, vejo-te mais jovem, viva, com a doçura que era só tua.
Queria não te decepcionar, mas agora só queria aninhar-me no teu colo, ser de novo pequeno, ter-te a ti, ao meu lado.
Sei que em mim vias o que mais ninguém vê.
Sei que adivinhavas quando eu não estava bem, sei que sabes do meu medo.
E se esta for a última carta que escrevo será pelo menos uma carta verdadeira.
Não sei como me meti nisto, nesta guerra longe, em terras de deserto e estranhos que nos odeiam. Afundo-me neste calor húmido as vinte e quatro horas do dia. O cheiro a latrinas e suor cerca-me. Há areia por todo o lado, na roupa, na comida, no ar. Às vezes penso que não consigo respirar.
Andamos todos estoirados, mas quando é para sairmos em acção, a adrenalina dispara e fazemos o que esperam de nós, aquilo para que fomos treinados. Todos sabemos que se hesitarmos isso pode custar-nos a vida. Faço por não pensar no que ando aqui a fazer, adio essa reflexão para quando sair disto, se sair disto.
Mãe, fui estúpido, pensei no exército como uma carreira, enganei-me com a história da honra de defender a pátria, queria encontrar um lugar onde pudesse sentir que pertencia e fui meter-me nisto.
Escrevo uma carta que não posso enviar-te, imagino que ainda assim poderás lê‑la.
Se morrer o que ficará de mim?
Não fiz nada, não escrevi um livro, não tive um filho, nem plantei uma árvore.
Além de ti, ninguém sentirá a minha falta, nem se irão lembrar dos aniversários, do meu nascimento e da minha morte.
Tenho de terminar aqui, ir para a missão que pode ser sem regresso.
Mas se morrer irei ter contigo.

1 comentário:

  1. Muito bom. Um desespero uma sensação sentida por milhares de homens ao longo dos séculos.
    Abraço

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