Ele tinha o
vício do trabalho. Ela tinha o vício de gastar dinheiro. Foi um casamento feito
no céu. Ele trabalhava. Ela gastava o dinheiro dele, com ela, com a casa e com
ele. Assim, ele tinha sempre fatos e camisas da moda de qualidade para envergar,
e quando regressava a casa, ao final do dia, encontrava um espaço acolhedor,
onde por vezes ela também estava, embora às vezes já a dormir.
Mas, um dia,
com a crise e a recessão económica foi despedido, “Teixeira, com grande pena
nossa, temos de o deixar ir”. Ignoravam sem dúvida que ele fazia o trabalho de
três, queriam reservar o lugar para o filho do primo do amigo, o Raul. Mais do
que zangado, ficou espantado. Não estava à espera. Naquele dia chegou mais cedo
a casa. Laura não estava. Foi‑se deitar antes que ela chegasse e foi a primeira
vez que tal sucedeu durante todos os anos que tinham estado casados. E para
continuar com as novidades, foi também ela que se levantou primeiro. Não
reparou, ou não quis reparar que ele ainda lá estava e saiu para as marcações
no cabeleireiro e massagista. Ele percebeu. Voltou aos seus horários
anteriores, saía cedo e tentava voltar tarde. Ainda procurou nova colocação.
Enviou currículos, contactou antigos amigos e conhecidos, mas nada. Ter já
passado dos quarenta não ajudava
Começou a
passar o dia no Centro Comercial. No café, lia o jornal, com a net grátis
procurava ofertas de emprego no seu Ipad. Passou a conhecer a empregada que o
atendia, a Dores, e alguns dos clientes. Quando passou a frequentador habitual
apercebeu-se que quando lhe perguntavam como estava, queriam realmente saber e
não era apenas um cumprimento vazio. Lá
no café, conversavam sobre as desditas da Dores, que não tinha sorte no amor. Já
nos trinta e cinco, sozinha, ela era a primeira a conseguir brincar com o
desgosto da maternidade adiada, enquanto afectuosamente lidava com todos os
clientes. Estes eram muitos e variados, jovens estudantes com discussões
existencialistas, absorvidos na primeira paixão ou desgostosos com a primeira
decepção amorosa, professores da escola ao lado, a queixarem-se dos alunos e
dos programas, solicitadores do escritório perto, estes últimos no café apressado
da manhã ou em conversas com clientes. Às vezes diferentes grupos de amigos, os
de homens que discutiam sobre futebol, as senhoras e jovens em confidências
sobre os seus difíceis amores.
Com o valor da
indemnização pelo despedimento poder-se-ia manter algum tempo, mas foi pensando
que teria de contar à mulher, sobretudo quando contemplava nos extractos da
conta, os débitos das compras.
Como chegava um
pouco mais cedo a casa, foi-se apercebendo de como raramente conversavam. Mesmo
antes, as suas conversas reduziram-se a combinações sobre jantares de trabalho
e os planos de férias dela – ele preferia ficar a trabalhar. Ela falava-lhe das
suas aquisições e ele pouco ouvia. Agora, quando voltava para casa, parecia-lhe
que ela o evitava, como querendo adiar qualquer explicação para a mudança de
horário.
Até que um dia
não pode esperar mais, contou tudo à mulher que ficou muito calada, a ver a sua
vida a andar para trás. Naquela noite, ela não lhe disse nada. No dia seguinte,
ela esperou pela noite para lhe dizer que queria o divórcio e saiu ela de casa,
com as malas que tinha já arranjadas quando ele chegou. Soube pouco depois que
tinha ido para casa do Raul, com quem a seguir casou, continuando alegremente a
gastar o dinheiro do marido, apenas agora com um marido diferente.
Consciente de
como estavam afastados, não se conseguindo lembrar se alguma vez teriam estado
apaixonados, não lhe custou a separação. Compensava o silêncio em casa com os
novos amigos no café. Ofereceu-se para ajudar quem precisasse com as contas e
começou a gostar de ter tempo para ouvir os outros e ouvir-se a si próprio.
Depois, juntou-se
com a Dores, passou a ajudá-la no café, e tiveram um miúdo.
Ganhou um novo
vício, o vício de viver.
Este conto é brilhante, é tão bom que não consigo dizer se gosto mais ou menos do que o da perfeição da imperfeição.
ResponderEliminarGábi, tens algum livro editado que eu possa comprar?
Será que não devo dar um pequenino desconto por seres meu amigo?
ResponderEliminarmas seja como for, muito obrigada por leres e pelas tuas palavras que são um grande incentivo para continuar a escrever
(e não tenho nenhum livro, só minitextos que envio para Colectâneas)
um beijinho
Gábi
Gábi, amizade à parte, tens um dom que está patente na estátua e no poder do vício, já li muitos livros de contos de autores consagrados e estás ao mesmo nível, continua a escrever assim para seres cada vez melhor. Beijinho do David
ResponderEliminarObrigada David
ResponderEliminarum beijinho
Gábi