A escolha
Antes não tinha muito
tempo para pensar sobre se era ou não feliz. Fora filha, jovem, apaixonada,
profissional, amante e companheira, e por fim mãe, equilibrando todas os
deveres e exigências, em dias que passavam preenchidos e céleres.
Sentiu depois saudades
tão dilacerantes desses dias que até duvidava que tivessem sido reais.
Sabia o momento preciso
em que tudo mudara, o Domingo, em que ao final da tarde, o Pedrocas, o seu
mais-novo em vez de irromper pelos quartos, reclamando a atenção dos pais, se
foi deitar. Viu-o corado pela febre e sem a energia que desde bebe mostrava, a
queixar-se que lhe doía tudo.
Pensaram que seria um
resfriado, mas ao invés de melhorar, só piorava. Passaram por consultas, exames
e internamentos, até vir o último diagnóstico: apenas um milagre o poderia
salvar. Nada havia a fazer, só podiam tentar que estivesse confortável e sem
dores e o fim seria rápido.
Apesar da dor e revolta
que então sentiu, apercebeu-se do estranho que por pelo menos duas vezes a
fixara ao longe. Aquele olhar fixo incomodara-a, mas estava longe, podia ser um
engano. Tinha a certeza que uma dessas vezes fora na rua onde morara, mas foi
no hospital, num momento em que ela estava sozinha, que ele veio ter com ela e
a abordou. Naquela altura tinha a bata azul dos médicos, pensou que fosse um.
E foi com uma voz macia e
em tom tão baixo que exigiu toda a sua atenção para perceber o que dizia que
lhe apresentou uma hipótese estapafúrdia:
- Poderia ter um milagre,
se sacrificasse a vida de cem crianças com a mesma idade do seu filho. Seriam
crianças que ela não conhecia, e ela não teria de fazer nada, só escolher a
vida do seu filho, ou a das cem crianças.
Ouviu-o e percebeu o que
dizia. Mesmo que depois dissesse para si própria que estava cansada, que era
irreal e impossível, e que nenhuma mãe faria uma escolha diferente, ela
respondeu-lhe: “salve o meu filho”.
Ele foi-se embora,
deixou-a a pensar que poderia ter sonhado acordada, quando lhe vieram dizer que
a febre descera. Todos ficaram surpreendidos e felizes com a recuperação do
Pedro. Foi um verdadeiro milagre, repetiram médicos e enfermeiros, quando lhe
deram a alta.
Teve uma semana de
felicidade com os filhos e o marido em casa até saber das Notícias: uma
estranha epidemia levara com morte subida cem crianças, todos com seis anos de
idade. Um deles era colega do Pedro. Ela nunca o vira, mas soube na Escola e
viu a mãe dele numa sala, a viva imagem da dor e consternação. Fora buscar as
coisinhas que o filho fizera na escola, repetia para a professora dele que não
percebia, ele estava tão bem, foi-se deitar e não voltou a acordar.
Não podia ter sido por
causa dela, repetiu para si mesma. Mas mesmo que soubesse que era verdade o que
aquele estranho homem lhe propusera, que mãe escolheria diferente? Tais
pensamentos não a tranquilizavam, sentia-se uma criminosa e dormia mal.
Não contou a ninguém o
que a consumia. Ninguém iria acreditar, podiam até interná-la.
Tentou convencer-se que
sonhara tudo.
Até que numa tarde, em
que sairia para uma compra, pareceu-lhe ver o mesmo homem. Não tinha a certeza que era ele, mas decidiu
segui-lo e foi o que fez, por duas ou três ruas. Viu então que ele se dirigia à
casa onde morava uma amiguinha da sua filha Helga. A menina estava a faltar às
aulas porque estava doente, tinha-lhe contado a filha. E ela e a filha tinham a
mesma idade…
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