segunda-feira, abril 22, 2024

Texto para concurso de Escrita - A Escolha

 

A escolha

 

Antes não tinha muito tempo para pensar sobre se era ou não feliz. Fora filha, jovem, apaixonada, profissional, amante e companheira, e por fim mãe, equilibrando todas os deveres e exigências, em dias que passavam preenchidos e céleres.

Sentiu depois saudades tão dilacerantes desses dias que até duvidava que tivessem sido reais.

Sabia o momento preciso em que tudo mudara, o Domingo, em que ao final da tarde, o Pedrocas, o seu mais-novo em vez de irromper pelos quartos, reclamando a atenção dos pais, se foi deitar. Viu-o corado pela febre e sem a energia que desde bebe mostrava, a queixar-se que lhe doía tudo.

Pensaram que seria um resfriado, mas ao invés de melhorar, só piorava. Passaram por consultas, exames e internamentos, até vir o último diagnóstico: apenas um milagre o poderia salvar. Nada havia a fazer, só podiam tentar que estivesse confortável e sem dores e o fim seria rápido.

Apesar da dor e revolta que então sentiu, apercebeu-se do estranho que por pelo menos duas vezes a fixara ao longe. Aquele olhar fixo incomodara-a, mas estava longe, podia ser um engano. Tinha a certeza que uma dessas vezes fora na rua onde morara, mas foi no hospital, num momento em que ela estava sozinha, que ele veio ter com ela e a abordou. Naquela altura tinha a bata azul dos médicos, pensou que fosse um.

E foi com uma voz macia e em tom tão baixo que exigiu toda a sua atenção para perceber o que dizia que lhe apresentou uma hipótese estapafúrdia:

- Poderia ter um milagre, se sacrificasse a vida de cem crianças com a mesma idade do seu filho. Seriam crianças que ela não conhecia, e ela não teria de fazer nada, só escolher a vida do seu filho, ou a das cem crianças.

Ouviu-o e percebeu o que dizia. Mesmo que depois dissesse para si própria que estava cansada, que era irreal e impossível, e que nenhuma mãe faria uma escolha diferente, ela respondeu-lhe: “salve o meu filho”.

Ele foi-se embora, deixou-a a pensar que poderia ter sonhado acordada, quando lhe vieram dizer que a febre descera. Todos ficaram surpreendidos e felizes com a recuperação do Pedro. Foi um verdadeiro milagre, repetiram médicos e enfermeiros, quando lhe deram a alta.

Teve uma semana de felicidade com os filhos e o marido em casa até saber das Notícias: uma estranha epidemia levara com morte subida cem crianças, todos com seis anos de idade. Um deles era colega do Pedro. Ela nunca o vira, mas soube na Escola e viu a mãe dele numa sala, a viva imagem da dor e consternação. Fora buscar as coisinhas que o filho fizera na escola, repetia para a professora dele que não percebia, ele estava tão bem, foi-se deitar e não voltou a acordar.

Não podia ter sido por causa dela, repetiu para si mesma. Mas mesmo que soubesse que era verdade o que aquele estranho homem lhe propusera, que mãe escolheria diferente? Tais pensamentos não a tranquilizavam, sentia-se uma criminosa e dormia mal.

Não contou a ninguém o que a consumia. Ninguém iria acreditar, podiam até interná-la.

Tentou convencer-se que sonhara tudo.

Até que numa tarde, em que sairia para uma compra, pareceu-lhe ver o mesmo homem.  Não tinha a certeza que era ele, mas decidiu segui-lo e foi o que fez, por duas ou três ruas. Viu então que ele se dirigia à casa onde morava uma amiguinha da sua filha Helga. A menina estava a faltar às aulas porque estava doente, tinha-lhe contado a filha. E ela e a filha tinham a mesma idade…

 

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