É
louca.
Espreitou-a pela janela fechada.
Dançava na rua descalça, não parecia sentir os pés
feridos pelas pedras nem a chuva gelada.
Pareceu-lhe que ria, julgou ouvir o seu riso.
É
louca.
Porquê
avó, porquê tia?
Não
é conversa para crianças, vai brincar com a tua boneca.
Mas ouvia-as a falar, a avó, a tia e outras mulheres.
Até
fora boa rapariga, mas fraca da cabeça.
Não o dizia, mas pensava, porquê?
Uma prima mais velha contou-lhe um dia, como vez após vez o seu ventre não segurava os
bebes que perdia. O homem dela largou-a e passou a fingir barrigas.
É
louca.
Terminadas as férias voltou para casa da mãe. Não
voltou à aldeia, em férias divididas pelo divórcio dos pais.
Não soube o que aconteceu àquela mulher, a louca. Se
se curou ou morreu e não pensava nela há anos.
Mas ali, lembrou-se.
Depois de consultas e esperas em salas cheias de
grávidas, confirmando-se que o tempo o permitia, deram-lhe um comprimido.
Não hesitou. A decisão estava tomada. Não era
programado ou desejado, ninguém o queria, não havia tempo nem dinheiro. Tão
fácil assassinar um filho que não o seria. Avisaram-na das contrações para
expelir o feto.
Foi até lá só
e regressou
sozinha.
No seu carro, antes de ligar o motor, pensou, está
feito.
Lembrou-se então da louca, a dançar à chuva, louca
pelos bebes que perdera e queria. Por instantes, pareceu-lhe que fora certo e
com sentido, algo devia marcar que tinham existido, que não eram nada.
Depois enfiou essas ideias e memórias na gaveta
fechada das mágoas adiadas para que a vida siga.
Até um dia.
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