quarta-feira, abril 17, 2024

CNEC 68/40 - 1/10

 

É louca.

Espreitou-a pela janela fechada.

Dançava na rua descalça, não parecia sentir os pés feridos pelas pedras nem a chuva gelada.

Pareceu-lhe que ria, julgou ouvir o seu riso.

É louca.

Porquê avó, porquê tia?

Não é conversa para crianças, vai brincar com a tua boneca.

Mas ouvia-as a falar, a avó, a tia e outras mulheres.

Até fora boa rapariga, mas fraca da cabeça.

Não o dizia, mas pensava, porquê?

Uma prima mais velha contou-lhe um dia, como vez após vez o seu ventre não segurava os bebes que perdia. O homem dela largou-a e passou a fingir barrigas.

É louca.

Terminadas as férias voltou para casa da mãe. Não voltou à aldeia, em férias divididas pelo divórcio dos pais.

Não soube o que aconteceu àquela mulher, a louca. Se se curou ou morreu e não pensava nela há anos.

Mas ali, lembrou-se.

Depois de consultas e esperas em salas cheias de grávidas, confirmando-se que o tempo o permitia, deram-lhe um comprimido.

Não hesitou. A decisão estava tomada. Não era programado ou desejado, ninguém o queria, não havia tempo nem dinheiro. Tão fácil assassinar um filho que não o seria. Avisaram-na das contrações para expelir o feto.

Foi até lá só

e regressou

sozinha.

No seu carro, antes de ligar o motor, pensou, está feito.

Lembrou-se então da louca, a dançar à chuva, louca pelos bebes que perdera e queria. Por instantes, pareceu-lhe que fora certo e com sentido, algo devia marcar que tinham existido, que não eram nada.

Depois enfiou essas ideias e memórias na gaveta fechada das mágoas adiadas para que a vida siga.

Até um dia.

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