quinta-feira, fevereiro 22, 2024

CNEC 67/39 - 6/10

Era bem pequeno quando uma queda o separou da família. Não sabia se teria já nascido com tal defeito nas asas ou se o mesmo foi consequência da queda. 

Ao recuperar a consciência teve a noção de que a mãe os irmãos estavam lá em cima, tentou piar para lhes chamar a atenção, mas ou não o ouviram ou pior, quiseram ignorá-lo, certos da sua morte iminente.

Suspeitou que poderia ter sido a mãe a expulsá-lo e a precipitar a sua queda, mas não queria acreditar nisso.

Tinha fome e frio. Sabia que corria o perigo de ser apanhado por predadores. Até simples e minúsculas formigas tinham reparado nele. Fugiu-lhes a rastejar, arrastando as asas que mal abriam.

Queria viver, mas as forças abandonavam-no. Talvez a morte fosse um manto claro e quente que o levasse para onde poderia voar.

Resignava-se a aceitar que morria quando foi apanhado. Foi a primeira vez que de perto viu um humano. Este tinha luvas grossas, mas foi com gentileza que o agarrou e levou para outro mundo.

Soube mais tarde que tivera a sorte de ser apanhado por um Cuidador, Paul Mesqsky.

Paul tentou tudo para o ajudar. Queria devolvê-lo à vida selvagem. Foi quando percebeu que seria impossível que sobrevivesse sozinho que o adoptou e o baptizou de Gav.

Paul começou a levá-lo consigo para onde ia e foi assim que Gav se tornou o primeiro e único gavião na Antártica. Felizmente por um curto período de tempo porque lá estava um gelo.

Na sua curta vida Gav não apenas sobreviveu quando tudo parecia contra si como inspirou outros salvamentos. 


Ou



Alcunha “Gavião”.

Porquê?

Pela forma como trepa por casas e prédios. Dir-se-ia que voa.

Mas não voa.

Não, não voa.

Olhou-o de longe. Muito magro, mal vestido. Comum, tão vulgar como os demais que para ali estavam.

Soube depois que o Gavião se metera em problemas. Falara demais, tornara-se um alvo. Lá fora não sabem das mortes na prisão. Não sabem como é sobreviver ali.

Se o mundo fosse diferente. Se também ele não andasse por ali perdido a contar os dias. Se ele fosse outro. Será que iria avisar o Gavião? Avisado já ele estava. Será que o poderia ajudar? Não via como. Tornar-se-ia também ele um alvo.

Soube que lhe tinham batido. Viu-o esmurrado, as marcas na cara, revelava as do corpo pela forma com andava.

Talvez agora o deixassem em paz.  Afinal daquela sova não contara nada.

Ouviu depois que iam terminar o trabalho. Estava marcado. Não passaria daquele dia.  Viu-o no pátio. Ele sabia. Tinha o olhar de um animal encurralado.

Houve um momento em os seus olhos se encontraram. Viu-o tão comum e pequeno, igual a si.

Algo lhe passou pela cabeça. Já tinha tido ataques antes quando falhava a medicação. Agarrou-se a um dos guardar antes de cair. Fingiu. Tão bem que a certa altura nem sabia se fingia.

A ele levaram-no para a enfermaria. Ninguém reparou que alguém aproveitara a confusão. Trepou pelos muros. Será que voou? Não, ele não voava. O Gavião fugiu e ninguém mais o apanhou, pelo menos que ele soubesse. Virou lenda na prisão. O incrível Gavião que conseguira sair dali, como se evaporasse no ar, como se voasse. Mas ele não voava.


Ou (texto de N.)

A Aldeia era pequenina e rodeada por montes verdes que pareciam estender-se para sempre. No centro, destacava-se uma igreja majestosa. Com uma aura mágica, cortava o vale ao meio e a sua torre erguia-se até ao céu. Lá no alto morava um gavião, abandonado há muito tempo pelos pais, e que nunca aprendera a voar.

 

O gavião era o único pássaro, símbolo da liberdade, pois só ele conseguia voar bem alto e espiar para lá das montanhas, trazendo notícias do mundo exterior para a aldeia. Era o papel que os seus pais tinham desempenhado, antes de desaparecerem misteriosamente.

 

O burburinho sobre o gavião fazia parte do dia a dia da aldeia, com todos temendo que ele pudesse cair a qualquer momento. Naquela época, tanto humanos quanto animais falavam. O pároco da igreja, um velho gato chamado Dom, estava muito preocupado com o seu querido gavião e decidiu liderar uma discussão entre os aldeões. Propôs que alguém mais experiente deveria ensinar o gavião a voar. Os humanos, por sua vez, sugeriram diferentes soluções, sendo a mais aclamada a ideia de fazer vários experimentos com o gavião até descobrirem como ele poderia voar por si mesmo.

 

Os humanos, em maioria, conseguiram convencer os ratos, que concordaram com a decisão. Assim, começaram os experimentos, que os humanos chamavam de científicos. Os outros animais, exceto os ratos, mantiveram-se atentos e solidários aos direitos do gavião. No entanto, de nada adiantou, pois, a decisão fora tomada em assembleia.

 

Após muitos experimentos, os humanos aprenderam tudo o que havia para aprender sobre voar. Um belo dia, decidiram ensiná-lo na arte de voar. Explicaram-lhe todos os pormenores: as asas, as patas, o corpo e até mesmo o que fazer se ele encontrasse dificuldades.

 

Chegou o momento em que o gavião, com todos os ensinamentos na mente, iria voar do alto da torre para a liberdade da aldeia. Subiu ao parapeito e encheu o peito de ar, tal como lhe tinham ensinado. A raposa, ainda atenta, alertou para a possibilidade de não funcionar. Mas as vozes dos ratos foram mais fortes: "Salta, salta!" E o gavião voou! Não muito alto, é certo, mas voou! Infelizmente, acabou por cair e morrer à entrada da igreja.

 

O gato, horrorizado com tamanha insensatez e pela perda do seu querido amigo, gritou alto e bom: "Vocês são uns humanos estúpidos e terríveis que nos trarão todas as desgraças do mundo!" Mas o que se ouviu foi apenas um miado triste e doloroso, como se a fome e a miséria tivessem invadido a pequena aldeia, perdida no meio do vale, e que até hoje ninguém jamais ouviu falar.

 

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