Sem lentes de contacto, deixei os óculos
ao lado do computador porque não preciso deles para ver ao perto, e olho pela
janela.
O mundo lá fora é uma tela impressionista,
tons de azul para o céu, verde das poucas árvores, cinzentos e dourados da rua
e edifícios.
As pessoas são pontos escuros, reveladas
pelo movimento.
Os carros, volumes maiores e mais
coloridos, movem-se mais depressa.
Em criança podia atravessar esta rua de
olhos fechados porque quase não havia trânsito e ainda não havia veículos elétricos.
Pelo som, apercebia-me da vinda e da
velocidade dos automóveis, para calcular a distância e o tempo que levariam a
chegar até onde estava.
Agora não me atreveria a fazê-lo. Os novos
carros lembram crocodilos, passam pelas ruas como se estas fossem rios,
empurrados pela corrente, escondidos na ausência de som.
Só quando tinha dezanove anos é que vi o
meu rosto. Desde os nove, dez anos a ter de usar óculos e com a miopia a
aumentar progressivamente, só com aquela idade é que comecei a usar lentes de
contacto. Sem óculos já não conseguia ver o rosto inteiro e com eles, os meus
olhos ficavam muito pequenos.
Quando
adolescente, por não gostar de me ver com óculos, andava com eles na mão, só os
colocando para confirmar o número do autocarro que queria apanhar. Em resultado
não reconhecia ninguém.
Uma vez vi num
saco de lixo um grande cão preto, suspeitando da sua estranha imobilidade, usei
de todo o cuidado para passar por ele.
Quando atualizava
as lentes, maravilhava-me o pormenor e detalhes que tudo em redor adquiria –
conseguia ver os contornos dos paralelepípedos na rua e as pessoas dentro dos carros.
Coloco os óculos
e olho de novo pela janela.
Desaparece a
tela impressionista, e regressam os detalhes no mundo diferente.
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