quinta-feira, outubro 26, 2023

CNEC 66/38 - 6/10

 

 

Ela arrastava-se pelas escadas, mais dolorosamente nas subidas quando com compras. Rangiam-lhe os joelhos, a mão esquerda magra e nodosa, com as veias azuis salientes, bem agarrada ao corrimão, enquanto que com a direita puxava o saco cada vez mais pesado. Ao chegar ao patamar, precisava de parar e recuperar a respiração, antes de enfiar a chave na fechadura e empurrar a porta.

No elevador é que não ia. O prédio era velho e o elevador ainda o parecia mais.

Fora morar para ali há anos e sempre desconfiara dele. Evitá-lo, nessa altura não lhe custava. Ajudara até na mudança, levando louça e cadeiras, até o pequeno sofá da sala, fora ela que o levara, com os braços abertos a contorná-lo num abraço incompleto, não via os seus pés, mas não falhou um degrau.

À medida que o tempo passava, parecia que os degraus cresciam em número e altura. Procurava ela diminuir as saídas.

Aquele dia fora igual, mas algo de diferente sucedeu.

Chegou ao patamar, mas antes de abrir a porta, ouviu uma voz sumida.

Vinha do elevador:

“Ai quem me acode, que morro aqui”.

Era a vizinha do quarto, uma miúda de sessenta anos, bem mais nova que ela, mas que sempre ia de elevador.

O elevador tinha parado entre o 3º e o 4º.

Enquanto com a sua voz mais calma e séria, dos anos antes da reforma, em que leccionara, disse à vizinha para se acalmar e ligou para o 112.

Só a tiraram de lá duas horas passadas e teve de saltar para o 3º.

Dias depois houve obras no prédio. Substituíram o velho por um novo elevador, silencioso e confiável até para ela. Passou a usá-lo, não esquecendo, no entanto, o telemóvel para o caso de voltar a ser preciso ligar para o 112.

 

2 comentários:

  1. A Catarina, ainda pequenina, e a empregada na época - presas no décimo sétimo andar do Peach Court do Ocean Gardens.
    Beijinho

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  2. Quantas mulheres se arrastam escada acima, escada abaixo sem esperança num elevador?

    Abraço

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