quinta-feira, setembro 28, 2023

CNEC 66/38 - 2/10

 

Lentamente a escuridão atenuava-se e precedido ou anunciado pelas aves, nascia o dia.

Via-o e pensava-o, mas não escrevia.

Era altura de regressar a casa e sacudir o frio da madrugada.

Foi o que fez e pouco depois arranjou para si um café. Bebê-lo, fazia-o crer por instantes que a situação se ia resolver. O efeito não era infelizmente duradouro.

Mudara de país e mudara de nome. Deixara crescer a barba. Os anos e as noites de insónia tinham coberto o seu rosto de rugas. Mesmo assim receava que alguém o reconhecesse, como se fosse um criminoso condenado e perseguido.

Entretanto conseguira a equiparação da sua licenciatura e começara a trabalhar como enfermeiro. Falava pouco, preferia pacientes quase iletrados, mesmo os mais difíceis que contra tudo e todos se zangavam. Elogiavam-no pela paciência quando ele não queria ser notado.

Trouxera consigo apenas duas edições, os dois primeiros e únicos, com uma diferença de meses. O primeiro fora logo saudado pela crítica e bem recebido pelo público. Enquanto terminava o segundo sentira que o mundo lhe pertencia.  Este dividira as opiniões, mas todas positivas, entre os que afirmavam que mantivera as expectativas e aqueles que clamavam que as excedera, e oferecera ao mundo uma pequena obra-prima que iria perdurar para sempre.

Talvez devesse ter começado logo o terceiro.

Ao invés ofereceu-se umas pequenas férias.

No regresso pensara ter mil e uma ideias.

Começou a ser incomodado pela preocupação de manter o seu estilo, aquilo em que seria original, para concluir que já nem sabia o que era.

Foram meses terríveis esses até que concluiu que se esgotara em dois livros e já não conseguia escrever.

Fugiu.

Com o café da manhã ocorreu-lhe que agora combatia a morte e salvava vidas. Talvez não se tivesse perdido um escritor, mas nascido um salvador.

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