Dia 3 - corrimão, viagem, relógio
Correu pelas escadas
abaixo mal tocando no corrimão, dir-se-ia que voava.
Estava atrasado e ansioso
com o início da viagem.
Agarrou na carteira e mal
teve tempo para confirmar no relógio da sala que tinha tempo para apanhar o
autocarro. Mesmo assim foi em passos rápidos que se dirigiu para a paragem.
Apetecia-lhe gritar a todos aqueles com quem se cruzava “deixem passar, tenho pressa!”.
Quando lá chegou, a fila
era grande o que confirmou que não o perdera. Viu-o chegar, bastante cheio.
Poderia ser complicado
entrar (pensou). Felizmente quando
parou, saíram algumas pessoas (muito
poucas, todavia). As pessoas no início entraram. Os que estavam lá dentro
não pareciam contentes com a enchente fora. Quereriam talvez que o condutor
arrancasse e fechasse a porta para que não seguissem depois como sardinhas em
lata. Os que ainda estavam cá fora apressavam-se na subida e a fila desmanchara-se.
A certa altura pareceu que a porta ia fechar, mas dois homens fortes nos
degraus não o deixaram. Só via troncos e kispos à sua frente quando colocou o
pé direito no primeiro degrau. Quando pensava que não haveria espaço para ele e
que a porta se iria fechar, duas ou mais pessoas atrás dele empurraram-no e
entraram todos. Não tinha de se preocupar em agarrar um varão, nem conseguiria
sequer lá chegar. Comparados com eles, as sardinhas na lata estavam bem
desafogadas. Sentiu o percurso que não via até à sua paragem.
Cá fora o ar pareceu-lhe
mais límpido. Chegara ao seu destino.
Dia 4: Salvador
Mas que nome lhe haviam
de dar: Salvador!
À medida que ia crescendo
e apercebendo-se do sentido do seu nome, não percebeu bem quem ou o quê
quereriam que viesse salvar. Desconfiava que teria sido o casamento dos pais, e
via como um falhanço pessoal imperdoável, nada ter conseguido.
Ainda assistira a
discussões, rostos fechados, choros da mãe, portas batidas com força pelo pai.
Até que chegara a grande
conversa. Mesmo aí tinham discutido, contrariavam-se um ao outro na forma de o
anunciar, sentiu até que o esqueciam e de repente se tornara tão invisível como
o sofá velho da entrada. Fora para ali relegado quando chegara o novo e só
servia para nele pousarem casacos e compras. Ele coitado não se queixava, farto
de saber que dali esperava-o somente o abandono, a dissipação final no lixo.
Depois da conversa, começaram
a crescer os intervalos entre as visitas do pai. Quando vinha, passava o tempo
a fazer-lhe perguntas sobre com quem a mãe estaria a sair e a queixar-se “a tua
mãe é impossível”, “muito aguentei eu”. No regresso, era a mãe que o cercava,
se sabia já por quem o pai a trocara, se sempre era a lambisgoia do escritório
ou outra igual a ela. Ele que não sabia
de nada, nem queria saber, ficou até aliviado quando o pai deixou de vir.
Cresceu sozinho. Fez-se
médico e tratou de mudar o nome. Pedro pareceu-lhe melhor.
E dir-se-ia que a alteração
lhe trouxera sorte. Encontrou o amor da sua vida, a Inês. Casaram e tiveram
dois filhos. Também no trabalho, qual Midas na saúde, tudo lhe corria bem.
Crescia-lhe o número de pacientes. Todos queriam ser atendidos por ele. Foi
então que descobriu a alcunha que lhe tinham dado no Hospital. Colegas,
enfermeiros, auxiliares, enfim, todos, chamavam-no de Salvador.
Os Pedro têm todos esse dom :)))
ResponderEliminarBeijinho
Gostei particularmente do segundo texto e do seu final. Estava em si ser salvador.
ResponderEliminarA revista Palavrar, a que Analita também está ligada, foi apresentada sábado passado, nas Correntes D'Escritas.
Continuação de boas escritas.
Gostei dos dois textos mas especialmente do último, tem um final fantástico.
ResponderEliminarBeijinhos