segunda-feira, fevereiro 20, 2023

Textos que estou a escrever para o Curso Intensivo - Semana da Escrita com Analita Alves da Silva

 Dia 3 - corrimão, viagem, relógio


Correu pelas escadas abaixo mal tocando no corrimão, dir-se-ia que voava.

Estava atrasado e ansioso com o início da viagem.

Agarrou na carteira e mal teve tempo para confirmar no relógio da sala que tinha tempo para apanhar o autocarro. Mesmo assim foi em passos rápidos que se dirigiu para a paragem. Apetecia-lhe gritar a todos aqueles com quem se cruzava “deixem passar, tenho pressa!”.

Quando lá chegou, a fila era grande o que confirmou que não o perdera. Viu-o chegar, bastante cheio.

Poderia ser complicado entrar (pensou). Felizmente quando parou, saíram algumas pessoas (muito poucas, todavia). As pessoas no início entraram. Os que estavam lá dentro não pareciam contentes com a enchente fora. Quereriam talvez que o condutor arrancasse e fechasse a porta para que não seguissem depois como sardinhas em lata. Os que ainda estavam cá fora apressavam-se na subida e a fila desmanchara-se. A certa altura pareceu que a porta ia fechar, mas dois homens fortes nos degraus não o deixaram. Só via troncos e kispos à sua frente quando colocou o pé direito no primeiro degrau. Quando pensava que não haveria espaço para ele e que a porta se iria fechar, duas ou mais pessoas atrás dele empurraram-no e entraram todos. Não tinha de se preocupar em agarrar um varão, nem conseguiria sequer lá chegar. Comparados com eles, as sardinhas na lata estavam bem desafogadas. Sentiu o percurso que não via até à sua paragem.

Cá fora o ar pareceu-lhe mais límpido. Chegara ao seu destino.



Dia 4: Salvador


Mas que nome lhe haviam de dar: Salvador!

À medida que ia crescendo e apercebendo-se do sentido do seu nome, não percebeu bem quem ou o quê quereriam que viesse salvar. Desconfiava que teria sido o casamento dos pais, e via como um falhanço pessoal imperdoável, nada ter conseguido.

Ainda assistira a discussões, rostos fechados, choros da mãe, portas batidas com força pelo pai.

Até que chegara a grande conversa. Mesmo aí tinham discutido, contrariavam-se um ao outro na forma de o anunciar, sentiu até que o esqueciam e de repente se tornara tão invisível como o sofá velho da entrada. Fora para ali relegado quando chegara o novo e só servia para nele pousarem casacos e compras. Ele coitado não se queixava, farto de saber que dali esperava-o somente o abandono, a dissipação final no lixo.

Depois da conversa, começaram a crescer os intervalos entre as visitas do pai. Quando vinha, passava o tempo a fazer-lhe perguntas sobre com quem a mãe estaria a sair e a queixar-se “a tua mãe é impossível”, “muito aguentei eu”. No regresso, era a mãe que o cercava, se sabia já por quem o pai a trocara, se sempre era a lambisgoia do escritório ou outra igual a ela.  Ele que não sabia de nada, nem queria saber, ficou até aliviado quando o pai deixou de vir.

Cresceu sozinho. Fez-se médico e tratou de mudar o nome. Pedro pareceu-lhe melhor.

E dir-se-ia que a alteração lhe trouxera sorte. Encontrou o amor da sua vida, a Inês. Casaram e tiveram dois filhos. Também no trabalho, qual Midas na saúde, tudo lhe corria bem. Crescia-lhe o número de pacientes. Todos queriam ser atendidos por ele. Foi então que descobriu a alcunha que lhe tinham dado no Hospital. Colegas, enfermeiros, auxiliares, enfim, todos, chamavam-no de Salvador.

3 comentários:

  1. Os Pedro têm todos esse dom :)))
    Beijinho

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  2. Gostei particularmente do segundo texto e do seu final. Estava em si ser salvador.
    A revista Palavrar, a que Analita também está ligada, foi apresentada sábado passado, nas Correntes D'Escritas.
    Continuação de boas escritas.

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  3. Gostei dos dois textos mas especialmente do último, tem um final fantástico.
    Beijinhos

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