Seria sequer permitido?
A miúda chamava-se Outono.
Só a esse nome respondia.
Talvez na certidão, perdida
pela mãe ou esquecida num arquivo, constasse outro, quiçá fosse também Maria,
como tantas meninas são.
Não fora fácil trazê-la
para ali. A mãe, antes de desaparecer, fechara-a em casa. Os vizinhos
ouviram-na chorar e chamaram a policia. Tinha sido necessário rebentar com o cadeado
que prendia a porta. Ninguém sabia da chave ou da mãe.
Levaram-na primeiro ao
médico, depois para aquela Instituição. Pouco desenvolvida e estimulada para a
idade que tinha, não mais de três anos, e muito magra, mas de resto, saudável.
Queriam saber mais sobre
ela. Quem era afinal a mãe e se tinha mais família. Por azar veio a
confirmar-se que a Conservatória e a Igreja que poderiam desvendar esse
mistério tinham sido as varridas pelo maremoto de há três anos. Felizmente não
houvera mortos ou feridos. Algumas pessoas tinham até rido das vagas de papéis
desfeitos. O Sr. Padre é que se aborrecera a tal ponto que deixou a Ilha. Desde
então aguardavam que ali fosse colocado outro. Tinham tido de adiar,
baptizados, casamentos e funerais – a morte fora proibida.
Os vizinhos pouco ou nada
sabiam. A mãe chegara ali sozinha. Viria já grávida e nunca a viram com homem
nenhum. Tivera o bebe em casa. Decidira baptizá-la e lá se entendera com o Sr. Padre.
A cerimónia foi feita a correr porque a menina estava doente. Como em casos
parecidos, a Madrinha terá sido Nossa Senhora da Conceição, para que a
protegesse e salvasse. Ninguém se recordava de como a tinha chamado o Sr. Padre
no sacramento.
Decidiram por isso na
Instituição que ela seria Maria da Conceição.
Ela é que não esteve
pelos ajustes e rejeitou o nome que lhe ofereciam e impunham.
Foi crescendo teimosa e
arredia. Ninguém apareceu para a adoptar. Convenceu-se que ninguém a queria. Só
para si inventava histórias. Que a mãe ainda era viva, mas estava presa e por isso
não voltara por ela. Ou sofreria mesmo da cabeça – como tantos lhe diziam, para
deixar assim abandonada a cria – e ter-lhe-iam feito uma lobotomia. Ao invés de
melhorar, regredira. À medida que o tempo passava, piores eram as histórias e o
destino que inventava para a mãe que esquecia. Era tão pouco o que lembrava
dela, talvez só o calor, sentir-se quente, segura. Seria isso o amor da mãe por
ela?
Aprendeu o que lhe
ensinaram, ler escrever, assinar o seu nome, coser, cerzir, bordar, cozinhar.
Era esperta, mas fechada. De afectos não aprendeu nada (ou assim achava).
Aos dezoito anos deixou a
Instituição e a Ilha.
Ia descobrir o mundo e a
mãe, saber finalmente quem era.
Logo se apercebeu da
vastidão e indiferença desse mundo com que sonhara.
Algo de estranho lhe
aconteceu então porque se mudou o modo como via o passado. A ilha, de prisão
passou a refúgio. Talvez a mãe estivesse em fuga e não interessasse quem fora,
e sim quem ela podia vir a ser.
Uma presa na sua imaginação (a personagem).
ResponderEliminarE a outra (a autora) com a imaginação à solta.
Beijinho
:) um beijinho
EliminarUm excelente texto. Os meus parabéns. Cada dia a sua escrita é mais límpida, mais bem concebida. Quem dera eu fosse capaz de escrever assim.
ResponderEliminarAbraço e saúde
Não pode ser, a Elvira escreve muito, muito melhor do que eu !!! um abraço e muito obrigada
EliminarMais um conto que me fascinou e subscrevo as palavras da Elvira Carvalho.
ResponderEliminarBeijos e um bom dia
Gostei muito. É para continuar?
ResponderEliminarEra só um conto para um concurso. Obrigada Virgínia :)
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