quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Conto para Curso de Escrita - Outono

  

 

Seria sequer permitido?

A miúda chamava-se Outono. Só a esse nome respondia.

Talvez na certidão, perdida pela mãe ou esquecida num arquivo, constasse outro, quiçá fosse também Maria, como tantas meninas são.

Não fora fácil trazê-la para ali. A mãe, antes de desaparecer, fechara-a em casa. Os vizinhos ouviram-na chorar e chamaram a policia. Tinha sido necessário rebentar com o cadeado que prendia a porta. Ninguém sabia da chave ou da mãe.

Levaram-na primeiro ao médico, depois para aquela Instituição. Pouco desenvolvida e estimulada para a idade que tinha, não mais de três anos, e muito magra, mas de resto, saudável.

Queriam saber mais sobre ela. Quem era afinal a mãe e se tinha mais família. Por azar veio a confirmar-se que a Conservatória e a Igreja que poderiam desvendar esse mistério tinham sido as varridas pelo maremoto de há três anos. Felizmente não houvera mortos ou feridos. Algumas pessoas tinham até rido das vagas de papéis desfeitos. O Sr. Padre é que se aborrecera a tal ponto que deixou a Ilha. Desde então aguardavam que ali fosse colocado outro. Tinham tido de adiar, baptizados, casamentos e funerais – a morte fora proibida.

Os vizinhos pouco ou nada sabiam. A mãe chegara ali sozinha. Viria já grávida e nunca a viram com homem nenhum. Tivera o bebe em casa. Decidira baptizá-la e lá se entendera com o Sr. Padre. A cerimónia foi feita a correr porque a menina estava doente. Como em casos parecidos, a Madrinha terá sido Nossa Senhora da Conceição, para que a protegesse e salvasse. Ninguém se recordava de como a tinha chamado o Sr. Padre no sacramento.

Decidiram por isso na Instituição que ela seria Maria da Conceição.

Ela é que não esteve pelos ajustes e rejeitou o nome que lhe ofereciam e impunham.

Foi crescendo teimosa e arredia. Ninguém apareceu para a adoptar. Convenceu-se que ninguém a queria. Só para si inventava histórias. Que a mãe ainda era viva, mas estava presa e por isso não voltara por ela. Ou sofreria mesmo da cabeça – como tantos lhe diziam, para deixar assim abandonada a cria – e ter-lhe-iam feito uma lobotomia. Ao invés de melhorar, regredira. À medida que o tempo passava, piores eram as histórias e o destino que inventava para a mãe que esquecia. Era tão pouco o que lembrava dela, talvez só o calor, sentir-se quente, segura. Seria isso o amor da mãe por ela?

Aprendeu o que lhe ensinaram, ler escrever, assinar o seu nome, coser, cerzir, bordar, cozinhar. Era esperta, mas fechada. De afectos não aprendeu nada (ou assim achava).

Aos dezoito anos deixou a Instituição e a Ilha.

Ia descobrir o mundo e a mãe, saber finalmente quem era.

Logo se apercebeu da vastidão e indiferença desse mundo com que sonhara.

Algo de estranho lhe aconteceu então porque se mudou o modo como via o passado. A ilha, de prisão passou a refúgio. Talvez a mãe estivesse em fuga e não interessasse quem fora, e sim quem ela podia vir a ser.

7 comentários:

  1. Uma presa na sua imaginação (a personagem).
    E a outra (a autora) com a imaginação à solta.
    Beijinho

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  2. Um excelente texto. Os meus parabéns. Cada dia a sua escrita é mais límpida, mais bem concebida. Quem dera eu fosse capaz de escrever assim.
    Abraço e saúde

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    1. Não pode ser, a Elvira escreve muito, muito melhor do que eu !!! um abraço e muito obrigada

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  3. Mais um conto que me fascinou e subscrevo as palavras da Elvira Carvalho.
    Beijos e um bom dia

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    1. Era só um conto para um concurso. Obrigada Virgínia :)

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