quinta-feira, setembro 22, 2022

CNEC 61/33 - 9/10 Maria Gracinda

  

Começou a ir e regressar do trabalho a pé, fizesse calor ou frio, e mesmo que chovesse. Quase dois quilómetros, de manhã e ao final do dia.

O médico dissera-lhe que devia fazer exercício A mulher comentara que estava a ficar com uma barriga jeitosa, maior que a dela.

A olhar-se no espelho com mais atenção, deu-lhes razão.

Foi por isso que adoptou aquele novo hábito.

Tinha de acordar mais cedo e cansava-se um bocado no início. Depois passou a apreciar o passeio.

Houve um dia, uma segunda-feira, em que no regresso calhou reparar numa senhora de idade. Nada teria de especial. Tinha uma aparência frágil, como muitas. Vestia-se modestamente, também como muitas. O que lhe chamou a atenção foi os sacos que levava – as compras para a semana, como soube mais tarde. Era a custo que as segurava, andando devagar e concentrada.

Na segunda-feira seguinte arriscou, embora temesse que o levasse a mal. Ofereceu‑se para a acompanhar, levando um dos sacos. Ela olhou-o muito séria e consentiu, ou porque estivesse muito cansada, ou porque confiou nele. Coincidia o trajecto dela em parte com o dele, da Mercearia da esquina até um prédio velho.

Na semana seguinte, e nas que depois vieram, ela deixou que levasse os dois sacos.

Começaram a conversar. Ela morava com o marido, que ainda estava pior do que ela. Tinham as suas reformas, não era muito, mas para os dois ia dando, e ela em casa arranjava-se bem. O pior era trazer as compras.

Na terceira semana, deu com ela à porta da Mercearia.

Ela esperava-o com um brilhozinho nos olhos. Disse-lhe como se chamava –  Maria Gracinda - e perguntou‑lhe o nome.

Na despedida, além de uma boa tarde, percebeu que ela se emocionava, ao dizer‑lhe: “hoje fiz um amigo” e falava dele.

4 comentários:

  1. Pois, pois, ora está, o que conta é modo de narrar, o jeitinho de juntar as palavras de modo a criar uma atmosfera, um clima, que deixe o leitor com “um brilho nos olhos” para saber até onde nos levará a narrativa. E nada acrescenta, além da atmosfera, do clima, sem um ponto final, pois este é por conta do leitor, mas a semente da curiosidade já deixou nas entrelinhas. E não há a mínima possiblidade de não reler a história para saber se já "rolou" alguma coisa... Fez-me lembrar de Fialho de Almeida, e o conto A Velha. Lembrei só por lembrar. Uma bela narrativa!
    Um abraço, Gábi!

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  2. Agora vou ter de procurar esse conto :) Obrigada pelo comentário e um abraço também

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  3. É que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa não há, cantava o Sérgio Godinho.
    Beijinho, bfds

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