CNEC 61/33 - 2/10 - A carta

         Seria por ser um carteiro novo.

Ou pela rua ser só de casas, com grandes intervalos nos números, como saltar do 240 para o 256.

Ou ainda porque quem escrevera o endereço tinha uma letra antiga, com os números encavalitados.

Fosse qual fosse a razão, a carta foi enfiada no receptáculo errado, ao lado do da casa certa.

Os vizinhos que ali moravam, tinham ido para férias. Faziam-no sempre no mês de Agosto, e só regressavam dali a semanas. Seria então muito tarde para corrigir o erro.

A carta não tinha remetente e continha apenas uma folha com duas frases.

Era uma carta anónima, mas bem intencionada, o que não era muito comum em cartas desta natureza.

Na casa certa, Clara e Vasco viviam uma grande paixão. Nenhum deles acreditara sequer que fosse possível querer tanto assim a outrem e tão de repente. Viram-se pela primeira vez num supermercado. Repararam um no outro. sentiram a primeira atração. Ele tomou a iniciativa de a abordar para lhe chegar o último pacote de bolachas, esquecido na prateleira mais alta.  Não era da marca que ela costumava comprar, mas adivinhou que se o quisesse, ele a ajudaria. Começou então todo o deslumbramento que fez com que se envolvessem como se não existisse mais ninguém no mundo, e nem ontem, nem amanhã.

Dias depois do malfadado erro com a carta, chegava de surpresa a casa, o Jorge, marido da Clara. Ela julgava-o longe, a trabalhar na Suíça.

Fê-lo a meio da noite e trazia uma arma.

Tremeu-lhe a mão quando abria a porta. Subiu até ao quarto sem ligar as luzes porque conhecia bem a casa.

No seu quarto, na sua cama, dormiam os amantes. Disparou.

Na carta, na mesma letra tremida e difícil de ler, alguém escrevera.

Fujam. O Jorge sabe de tudo.