sábado, julho 02, 2022

CNEC 60/32 - 8/10 - Devia ir para casa

 

Devia ir para casa, mas podia ficar ali sentado um pouco mais.

O banco tinha sido vermelho, agora estava algo descolorido e desengonçado. Nada apto a atrair a atenção, especialmente porque a Primavera ressurgia em força. Arbustos e ramos de folhas verdes estendiam-se e cobriam-no em parte.

Ainda assim, raios de sol chegavam até ele.

De onde estava, ouvia o chilrear dos pássaros, via-os a esvoaçar por entre as árvores. 

Estranho como nenhuma das pessoas que atravessam o jardim parece reparar na cor e vida que os rodeia.

Andam apressados e de rostos fechados.

 Devia ir para casa, mas não sabia muito bem como.

Há meses tivera um acidente. Ia a atravessar a rua, pela passadeira em frente. Confiou nos seus ouvidos, não olhou. O carro atingiu-o do lado esquerdo. Sentiu a pancada que o projectou, bateu com a cabeça no chão. Estranhos rodearam-no. Tiraram-lhe a luz e o ar. Não conseguia respirar e o coração batia-lhe no peito em espasmos que mais o assustaram, até que deixou de bater.

Sentiu que afundava num buraco escuro, sem luz no final do túnel.

Não se lembra de ter estado no Hospital.

Viu-se de novo ali no jardim. Não sabe bem se a pancada lhe roubou a memória. Será por isso que lhe parece difícil ir para casa?

Ou se passou para o outro lado. Nenhuma das pessoas apressadas que por ali passam parece vê-lo. Talvez devesse interpelá-las.

Sentiu então um toque leve no seu braço. O menino frágil ao seu lado pareceu-lhe vagamente conhecido: “avô, vamos para casa?”

Ainda estava vivo e tinha um neto que sabia o caminho para casa.

Afinal aquele era um bom dia para sentir o calor do sol também dentro de si.

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