quinta-feira, junho 09, 2022

CNEC 60/32 - 5/10 - Dez palavras

 

 

Os dois homens, cinzentos e indistintos, aguardavam em silêncio.

Num gesto imperceptível aos demais disse-lhes para começarem.

Lá fora uma chuva fininha disfarçava as lágrimas da sua sogra, amparada no marido, e esperavam-nos quatro homens, fortes como se impunha. Não por ela que pouco pesaria. Sempre fora magra e a doença reduzira-a a pele e osso.

Nunca conseguiu cumprir a promessa de lhe ser fiel, sobretudo quando ela engravidou e teve a menina. A Mila, já com vinte anos, como o tempo passa. Boa aluna, boa filha, o seu orgulho.

Infelizmente crescera a ouvi-los discutir, ele a querer ver-se livre de uma mulher que não o atraía, ela sempre ciumenta, mesmo após o seu divórcio, há treze anos.

A miúda nunca se deu bem com as suas namoradas. Para quê, se duravam tão pouco? disse-lhe ela um dia, e era verdade.

A mãe deprimia-se em casa, sozinha e amarga. A filha, não, felizmente saíra a ele, forte, determinada.

Deixara-se divagar para se abstrair do momento.

Desciam o caixão, esperaram uns segundos. Ninguém disse nada. Começaram a lançar a terra.

Regressaram em silêncio e despediram-se. Guardou a carta que a filha lhe entregou “é da mãe, para ti”. Iria lê-la depois. Adivinhava as queixas e recriminações que devia conter. Combinaram um almoço no fim-de-semana. Ela continuaria a morar na casa dos avós.

Ia tudo manter-se como sempre. Não sentia culpa, mas alívio por ter terminado. Talvez nunca a tivesse amado, mas dera-lhe a menina, filha única, perfeita, um sentido para a sua vida.

Ao entrar em casa, tirou o sobretudo e pegou na carta. Lê-la seria o ponto final que lhe devia para a esquecer de vez.

Dez palavras apenas:

A Mila não é tua filha, é do teu irmão.

Mudaram o seu mundo.

Viu-se como era, velho e só.

 

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