quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Post 7961 - Campeonato de Escrita 53/25 - 7/10 - O que vejo da minha janela

O que vejo da minha janela

 

Chuva, chuva, chuva.

Na rua inclinada há um rio de lama que cresce e ruge.

Uns poucos carros ainda se aventuraram a subir e a descer, mas o último foi arrastado pela torrente de lama. À janela o condutor e passageiro, os dois de máscara pareciam alarmados, mexiam muito os braços. A viagem forçada parou quando embateram no contentor verde de lixo. Fugiram a nadar para longe do carro e da rua.

Desde então, mais nenhum carro se viu.

Nem gente valente que lutasse contra a corrente ou nadasse pelo rio.

Continua a chuva, indiferente e impaciente. Sucedem-se as bateladas, ávidas e geladas.

Antes pensava que vivendo no segundo andar estava segura.

Deixei de ouvir os do primeiro andar há alguns dias. Também não falavam muito. À noite escutava os seus suspiros fundos, mas agora só ouço a chuva.

Os do rés-do-chão mudaram-se há muito, partiram num bote. A senhora de xaile repetia “viver assim não é possível”. O marido de galochas amarelas nada dizia. Levavam pouca coisa. O resto não cabia no bote ou estragou-se.

Cresce o rio, sobe a água.

Já quase não tenho comida. Não há luz, nem gás, mesmo onde não chove, está húmido. A humidade inunda a casa, sinto-a nos ossos, dor contínua e fina.

A enxurrada leva tudo, poderá levar a casa?

Enfrentarei o dilúvio, sem arca.

De noite sonhei que fujo de balão para um país quente. De cima olhamos para baixo e à volta, o céu azul sem nuvens, a terra vermelha e seca, o sol enorme, bola laranja e amarela, ardente.

Acordei e algo de estranho se passava.

Não ouvi a chuva.

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