Quando mudaram para
aquele prédio contaram os vizinhos da frente que ali apenas havia outra
criança, mas era um miúdo complicado. A mãe soube depois mais pormenores da
vizinha, em empréstimos de açúcar e ajudas na mudança: “Filho de pais
separados, a mãe bebia, envolvia-se com muitos homens, alguns deles casados.
Uma vergonha. Primeiro tive pena do garoto, mas parece um gato selvagem,
olha-nos meio de lado”.
Encontrou-o pela primeira
vez nas escadas quando saía para um recado. Não gostou de como ele olhava para
ela, de cima para baixo, apesar de estar uns degraus mais acima. Ele deve ter
percebido que ela não engraçara com ele, mas ao invés de se afastar, pôs-se a
imitar com voz de troça a última frase da mãe: “Rosa conta bem o troco, não te
enganes”. Deu-lhe uma raiva que não se conteve, empurrou-o. Apanhou-o de
surpresa e ele caiu. Logo levantou-se e cuspiu-lhe: “Rosa só tens espinhos”.
Ela tentou dar-lhe um pontapé, mas ele fugiu. Pensou depois que não se portara
bem, mas era talvez tarde de mais para mudar porque a partir daí se tornou um
padrão quando se cruzavam sozinhos. Ele vinha com trocadilhos sem graça, ela
tentava empurrá-lo, ele fugia. Se mais alguém estivesse por perto, agiam como
estranhos.
Quando fez dez anos
estreou um vestido lindo. Brincou a tarde toda lá fora, mas quando vinha para
casa, caiu e rasgou-o em baixo. Veio em prantos a imaginar o castigo e tinha
dele lhe aparecer pela frente. Viu que ela chorava e o motivo. Dessa vez não fez
troça. Pareceu até preocupado por ela.
Não se livrou do açoite,
mas ficou a pensar nele. No dia seguinte quando o encontrou, ele também não
falou nada. Ela chegou-se ao pé dele e disse-lhe baixinho, deixando-o espantado
“assim gosto de ti”.
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