CNEC52/24 - 3/10 - Uma década

Já não o via há mais de uma década quando o vejo na televisão.

Incrédulo levantei-me do banco do Café onde me encontrava e aproximei-me do ecrã suspenso na parede, 1 m por 1,5 m, como se fosse ele que ali estivesse, à minha frente.

Em primeiro plano, consegui ver-lhe mais rugas, e cabelos brancos que antes não tinha, mas era ele. Vivo. Como era possível?

Ainda em choque comecei a prestar sentido ao que dizia:

“Sobrevivi para me vingar e agora chegou a hora.”

Olhei à minha volta. Além de mim, ninguém dava qualquer atenção à reportagem na televisão. Os pobres diabos que ali estavam, apenas procuravam no álcool o esquecimento momentâneo das suas miseráveis vidas. Na televisão viam um miserável igual a eles, mal-vestido e desdentado, a cuspir como tinha sido abandonado para morrer

A imagem passou para o jornalista impecavelmente vestido que anunciou estar a policia à procura do empresário que escravizara aquele trabalhador e o deixara meio-morto, na ilha deserta. Concluía como ele corajosamente sobrevivera, alimentando-se de raízes, na ânsia que lhe fosse feita justiça. Como é que o levavam a sério? Não poderiam achar que era louco?

Não havia tempo a perder. Embora seguro de ter queimado todas as pistas corri para casa. Quando cheguei olhei para a minha imagem de relance no espelho da entrada. Ao contrário dele tinha mudado. Careca, com barriga, mas bem cuidado e bem vestido. Ninguém do meu passado me reconheceria. Sorri para mim próprio. Tinha era de manter-me confinado e esperar que nova noticia sepultasse aquela.

Nem meia hora passara quando ouvi a sirene da polícia. Mas como?

Soube mais tarde que fora traído pelo cirurgião plástico. Vi-o na televisão da esquadra a gozar os seus cinco minutos de fama enquanto exibia as fotografias do antes e do depois.