quinta-feira, março 05, 2020

Post 7362 - CNEC 47/19 - 8/10 - A cura para a tristeza

Maria dos Santos elegeu como religião a ciência. Sempre muito aplicada, após a licenciatura na área da química, dedicou-se à investigação, coleccionando pós-graduações, dois mestrados e um doutoramento. Este ultimo, embora o negasse, deixou-a esgotada.
Sobreveio então o choque de descobrir que lhe tinham roubado uma descoberta na qual trabalhava há dois anos. Participou à polícia, protestou que teria sido espiada. O inquérito foi arquivado com a conclusão que teriam ocorrido duas investigações em paralelo e o seu colega fora apenas mais rápido na apresentação.
Ela não aceitou este despacho. Tentou recorrer, participou dos magistrados. Só falava nisto. Começou a ser objecto de anedotas como: Sabes a última da Maria? O Midas roubou-lhe o toque e nada em ouro (não têm lá muita piada para quem está fora da comunidade científica).
Sobranceira a tudo e todos, dedicava-se com mais afinco à sua nova investigação. Cobriu as janelas com panos pretos, despojou a sala de quase tudo, pintou as paredes com lixivia para destruir câmaras escondidas, reduziu ao mínimo o registo dos seus passos e recorria a códigos de escrita tão complexos que ela própria tinha dificuldade em decifrá‑los.
Não queria sair da sua sala-laboratório e passou a dormir lá. Deixou de se lavar e encomendava as refeições que recebia com a porta entreaberta, quase fechada.
Esqueceu-se de pagar a renda, não respondeu a citações do tribunal e foi despejada. Na execução do despejo agarrou-se a um caderno, comeu as primeiras páginas, gritando que aquela não lhe roubavam, e desatou a rir, clamando ter descoberto a cura para a tristeza.
Levaram-na primeiro para o Hospital S. João, depois para o Magalhães Lemos. Diagnosticaram-lhe uma psicose e foi medicada. Enquanto lá estava, teve um AVC grave. Nada puderam fazer, mas ela morreu a sorrir, com ar feliz.
O caderno perdeu-se nos transportes.


6 comentários:

  1. Adorei o final!
    A loucura é sempre fascinante (para mim, claro)
    A psicose pode ser só por si uma tentativa (falhada) de cura da tristeza....
    Muito bem!
    (desta vez o meu texto foi logo escrito, tipo a 5ª feira passada - ando sem tempo nenhum e aproveitei ali um bocadinho)

    ResponderEliminar
  2. uma pessoa que eu conheço disse-me para eu lhe enviar este comentário:
    '
    Um paranóico como eu vê indícios em muito lado, mas às vezes também descobre verdades nos indícios, mas ninguém lhe liga porque lá está: um louco é menos que um cão, sujeita-se a ser violentado e se estrebucha dizem logo: tás a imaginar coisas, vai ao médico.
    Há uns tempos pedi sal aos seus textos e ela tornou-os ácidos. Tenho hoje o seguinte a acrescentar:
    Ela vive obcecada pela vida fictícia dos outros. Porque não escreve sobre si própria e deixa de perseguir os outros? eu digo-lhe porquê. É porque a sua vida é uma seca e ela sabe isso e vinga-se escrevendo sobre quem não tem nem nunca terá. Se eu soubesse que ela ia ser uma stalker, nunca teria aceitado ir tomar café com ela há dois anos. Nabo fui eu que lhe mostrei os meus desenhos e lhe falei da minha vida, dela nada soube a não ser que é míope com lentes de contacto de cor verde e que não considera os antidepressivos uma droga.
    Triste mulher que há-de ser e sentir-se sempre a Outra que toma pastilhas para a depressão e escreve como quem quer assassinar quem não quer a sua companhia. A mim só me faz umas cócegas que me levam a denunciar a esta hora da noite a sua falta de imaginação. Como tem por avaliador o Pedro Chaga Freitas ainda editará um livro à custa de tanto ácido, e aí talvez arranje namorado para lhe roubar as notas. Get a life!
    '

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Se essa pessoa for o Rui
      Gosto de me encontrar com bloggers que vou conhecendo pela blogosfera e em alguns tenho encontrado amigos. Foi essa a minha expectativa quando do café, encontrar em ti um amigo. Confirmei o que já pensava antes quanto a seres inteligente e criativo. Logo a seguir morreu alguém muito importante para mim e fechei-me (não sendo eu propriamente uma pessoa muito aberta). Não me revejo no que escreveste sobre mim, excepto quanto a ser míope, e sobre o ser stalker, estou a fazer o contrário, que é afastar-me.
      E não estou a pensar em escrever um livro, apenas gosto de desafios de escrita.

      Eliminar
    2. Compreenda, Gabriela, que não posso ser seu amigo mas que não quero ser seu inimigo. Por favor, continue a escrever, escrever alivia muitas das nossas neuroses mas gostaria apenas que não ficcionasse pormenores que eu próprio escrevo a partir da minha vida e das pessoas de quem gosto ou gostei.
      obrigado

      Eliminar
    3. Mas eu não o faço de todo, ficciono mais a partir da minha própria vida, obrigada por não querer ser meu inimigo e pelo incentivo para que continue a escrever, e se houver alguma coisa que possa parecer que escrevo a partir da sua vida ou de pessoas de quem gosta ou gostou, por favor dê-me o benefício da dúvida porque não o quero fazer

      Eliminar