Ela de braço ligado e um olho fechado seguia com pouca
atenção as notícias: ouviu o seu nome:
“Maria das
Dores Silva, cinquenta anos.”
Como é?
“Mais uma
vítima de violência doméstica”
Mas como é seus grandecíssimos filhos da p… não bastava
estar ali moída, ainda tinha de ouvir aquilo? Mas que cinquenta anos? No dia
anterior completara o seu quadragésimo aniversário!
E não era vítima de violência! Tivera o azar de quando ele
lhe arreou, estar ao pé das escadas, falhou o corrimão a que se ia agarrar,
malhou com as costas nos degraus. Resultado: uma costela partida. As feridas no
braço e no olho, tinha-as antes de cair.
Estava num quarto de enfermaria com mais quatro camas, mas
ninguém ali terá percebido que era ela a noticiada. Considerou dizê-lo: “A Maria das Dores sou eu,
mas não
tenho cinquenta anos, só quarenta”
só quarenta?
Já quarenta.
O que é que eu fiz da minha vida? Fungou, mas não conseguiu
chorar. O que lhe deram para as dores deixara-a meio inerte, melhor do que se
tivesse bebido. Se os seus pais, que Deus tem, a vissem…Pensar neles quase fez
com que saísse uma lágrima, mas não, não estava para ali virada.
Ainda tinha o cabelo escuro, sem brancas, poucas rugas,
faltavam-lhe dois dentes, um fora-se com um murro, mas ele pagara-lhe a ponte.
Agora com o olho negro não estaria no seu melhor, mas se lhe dessem uns dias,
levantar-se-ia jeitosa. Que cinquenta, se nem quarenta lhe davam… e antes de
ontem também não os tinha.
Amanhã far-se-ia à vida, o homem dela viria buscá-la se não
o tivessem prendido. Aquilo não fora ele mas o álcool. Era fraco com a bebida.
Talvez com o susto da polícia à porta, deixasse de beber…
Ou pelo menos de lhe bater.
De repente existia.
Eu
Sentia o espaço
infinito ao meu redor.
Foi pelo tacto que
comecei a conhecer o mundo. Podia estender-me em qualquer direcção, rodopiar
sem limites. Não tinha noção das dimensões e do que me separava do que existia
em redor.
Pouco a pouco, à medida
que o tempo passava, crescia.
Ganhei outros sentidos.
Como ouvir. Sons
abafados. Comecei a reconhecer alguns, sobretudo vozes.
O gosto, amargo,
salgado, doce.
Crescia e o espaço que
antes acreditava infinito, diminuía, comprimia-me, limitava-me.
Vozes apreensivas e
abafadas, e pressão, forçaram-me a uma cambalhota e fiquei de cabeça para
baixo.
Queriam expulsar-me e
eu queria evadir-me. Queria encontrar de novo o espaço infinito, mas primeiro
fui forçado a passar por um túnel ainda mais apertado. No entanto, ao fundo do
mesmo, havia luz.
Não sabia ainda nessa
altura que descobriria mais um sentido, a visão.
Naqueles instantes algo
imenso sucedia.
Nasci.
Antes não precisava de
palavras. Adivinho que à medida que as aprendo vou esquecendo o essencial.
E queria escrever o
essencial numa carta ao mundo, apesar de não ter palavras, que ainda não
conheço.
Ainda não falo, muito
menos escrevo, mas reconheço uma palavra, alguém que é tudo e cuida de mim:
MÃE.
Acredito que ela
consegue adivinhar o que penso quando nos olhamos, sei que ela me vê e sabe que
eu A vejo.
Tento passar-lhe o
essencial. Ela escreverá esta carta por mim.
Existo. E quero um
mundo infinito.
Que não me limite,
comprima ou mate.
O essencial:
Que todos, ao invés de
o destruirmos, façamos algo para que a aguardar cada nova vida, haja um mundo
infinito.
Por diversos motivos directa ou remotamente envolventes a mim, por si só incluindo o que escrevi num dos últimos textos que partilhei no meu próprio espaço virtual (blogue), como que em grande medida entendo perfeitamente o muito bom texto da Gábi: "Ontem foi o meu aniversário", cujo conteúdo no entanto lamento por todos os motivos e mais um, inclusive enquanto eu do género masculino.
ResponderEliminarQuanto ao segundo texto da Gábi: "Carta", salvo atrevido erro interpretativo da minha parte, leva-me a pressupor maternidade por parte da autora... :). Mas confirmando-se ou não como tal, é em qualquer caso e a meu modesto ver pessoal um excelente texto, que tanto mais se a confirmar-se como tal... ;).
Muitos parabéns, ao menos, pela vertente literária!
VB
Muito obrigada Victor Barão - mas os dois textos surgiram por desafios de escrita, gostaria muito mas nada de maternidade por parte da autora
ResponderEliminarum beijinho e Bom Ano
...pronto a essência e o excelente conteúdo do texto, levou-em a pressupor _ mas que segundo desejo ou gosto da Gábi lá chegará a hora! Ainda que convenha-se muito mais especialmente excelente e belo seria, o texto, se coincidisse com a minha suposição!
EliminarDe qualquer modo felicidades e tão boas escritas quanto a em causa... para a Gábi, desde já, em 2019
Beijo