Não devia falar comigo
mesmo, especialmente porque o faço em voz alta. Se alguém passasse por aqui,
pensaria que sou louco, um velho louco, abrigado da chuva por baixo de uma
arriba, a falar sozinho. Há avisos que pode ruir, a impor a distância, mas
daqui vejo o mar, aqui estou abrigado da chuva.
Com o ruído das ondas e
da água a cair, bem tenho de falar alto para me ouvir.
Gosto destes dias de
Inverno, cinzentos e escuros. Gosto de ver quando chove, assim como espadas
geladas e quebrarem-se nas águas revoltas.
Pouco a pouco, mesmo
abrigado, vou ficando enregelado. Não me apercebo de quão gelado estou até me
mover. Nessa altura o frio dói-me. Sei que devo ir embora. Mas, quando o faço
sinto-me limpo, como se tivesse lavado a alma.
Ainda não estou assim, posso
continuar aqui mais algum tempo.
Hoje passei por um
homem aborrecido por ter o carro riscado, Queixava-se de o ter raspado na porta
da garagem. Ao ouvi-lo pensei que tinha um carro, uma garagem e uma casa,
imaginei-o como uma família dentro dessa casa. Tomava-os como certos, não lhes
dava valor. Estragou-lhe o dia o sucedido.
Ele passou por mim sem
me ver. Enquanto velho vagabundo ganhei o poder da invisibilidade. Se me
dirigisse a ele, tal como estou, iria evitar-me, zangar-se-ia.
Mas se eu cortasse o
cabelo, a barba, me vestisse de outra forma, talvez me visse como seu
semelhante. Rir-se-ia se tentasse aconselhá-lo a dar valor ao que tem.
Sou mais livre agora
que não me preocupo com trabalho, ter uma casa, pagar as contas.
Tento viver o momento,
mas carrego as dores das perdas. Morreram-me os poucos que me conheciam. Por
isso gosto de vir para aqui e falo sozinho, para não me perder de mim próprio.
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