quinta-feira, outubro 04, 2018

Post 6855 Desafio de Escrita 4/10 Monólogo


Não devia falar comigo mesmo, especialmente porque o faço em voz alta. Se alguém passasse por aqui, pensaria que sou louco, um velho louco, abrigado da chuva por baixo de uma arriba, a falar sozinho. Há avisos que pode ruir, a impor a distância, mas daqui vejo o mar, aqui estou abrigado da chuva.
Com o ruído das ondas e da água a cair, bem tenho de falar alto para me ouvir.
Gosto destes dias de Inverno, cinzentos e escuros. Gosto de ver quando chove, assim como espadas geladas e quebrarem-se nas águas revoltas.
Pouco a pouco, mesmo abrigado, vou ficando enregelado. Não me apercebo de quão gelado estou até me mover. Nessa altura o frio dói-me. Sei que devo ir embora. Mas, quando o faço sinto-me limpo, como se tivesse lavado a alma.
Ainda não estou assim, posso continuar aqui mais algum tempo.
Hoje passei por um homem aborrecido por ter o carro riscado, Queixava-se de o ter raspado na porta da garagem. Ao ouvi-lo pensei que tinha um carro, uma garagem e uma casa, imaginei-o como uma família dentro dessa casa. Tomava-os como certos, não lhes dava valor. Estragou-lhe o dia o sucedido.
Ele passou por mim sem me ver. Enquanto velho vagabundo ganhei o poder da invisibilidade. Se me dirigisse a ele, tal como estou, iria evitar-me, zangar-se-ia.
Mas se eu cortasse o cabelo, a barba, me vestisse de outra forma, talvez me visse como seu semelhante. Rir-se-ia se tentasse aconselhá-lo a dar valor ao que tem.
Sou mais livre agora que não me preocupo com trabalho, ter uma casa, pagar as contas.
Tento viver o momento, mas carrego as dores das perdas. Morreram-me os poucos que me conheciam. Por isso gosto de vir para aqui e falo sozinho, para não me perder de mim próprio.

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