Estavam
ali apenas os dois, ele e a mãe, na pequena e fria capela, noite cerrada lá
fora. Primos e vizinhos tinham desistido um a um, e ido procurar algures calor
e jantar. Também a eles só seria permitido ficar ali mais alguns minutos. O
enterro seria de manhã. Sem o olhar, e em voz baixa foi então que a mãe lhe
disse:
-
“Este não é o teu pai”
Quedou-se
sem reacção aparente. Pouco dormira desde o telefonema no dia anterior.
Metera-se no carro, numa viagem de seis horas, para estar ali. Crescera numa
casa de poucos afectos. Não se recordava de alguma vez os pais terem trocado
entre eles gestos de carinho. Pensara que a vida dura os fizera assim. Ele cedo
começara a afastar‑se, primeiro pelos estudos, depois pelo trabalho.
Olhou
para o corpo no caixão, rígido no seu melhor fato, olhos fechados, o nariz
proeminente, alto e largo, que sempre vira como a sua herança.
Pensou,
como não é o meu pai? E a mãe andava meio esquecida. Estaria também confusa? Mas
quem poderia então ser seu pai?
Adivinhando
a questão que não chegara a colocar, respondeu-lhe a mãe:
-
“O primo Luís.”
Levou
algum tempo até se lembrar do retrato entre outros, sobre os naperons, no velho
louceiro, do jovem mangala que morrera no ultramar.
À
noite em casa foi olhar o retrato. Jovem e para o gorducho, mas com um nariz
normal. Foi-se ver ao espelho e o seu nariz pareceu-lhe mais pequeno.
Na
manhã seguinte, quis confrontar a mãe que o olhou muito séria:
-
“Mas que se passa contigo, claro que é o teu pai que vamos agora enterrar. Cala‑te
lá com isso.”
Ao
entrar no carro, no espelho retrovisor voltou a reconhecer o seu nariz batatudo
mas viu-se também mais gorducho.
Gostei muito do texto.
ResponderEliminarE é um óptimo exemplo da diferença entre pai e espermatozóide.
Beijinhos
Muito obrigada Pedro :)
Eliminarum beijinho
Quantas ilações a tirar deste teu conto, nesta Revelação "meio" revelada, mas suficientemente explícita !
ResponderEliminarO pai "autor" e o pai "criador" ! ... Quem será mais pai ?...
... e como a nossa mente é influenciada por nós próprios !
Muito bom, Gábi ! :)
Muito obrigada Rui :) (para mim em principio será mais o segundo :)
Eliminarum beijinho
gosto destes desafios pequenos com tanta coisa grande :)
ResponderEliminarTambém gosto Laura - excepto quando o prazo está a terminar e ainda não escrevi nada :)
EliminarA verdade deve ser revelada sempre, seja qual for o momento!
ResponderEliminarBeijinho imenso Gabi
Neste caso acho que ele não ficou bem a saber qual é a verdade :)
Eliminarum beijinho imenso também Adélia
Sem dúvida foi uma grande revelação.
ResponderEliminarExcelente narrativa.
Beijinhos
Maria
Muito obrigada Maria :)
ResponderEliminarum beijinho
Baralhado mas não traumatizado. :)
ResponderEliminarNão, vá lá, pelo menos traumatizado não ficou :)
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