Horas Perdidas
A 24ª Hora – Último
Capítulo
Um, dois, três,
Um, dois, três,
Era como ouvia o
relógio.
Um, dois, três,
Um, dois, três.
O som enchia o pequeno
espaço. Estava deitada, na sua cama, no seu quarto, transpirada e fria.
Passara a noite em
claro, com pensamentos pesados e escuros.
Dali a duas horas,
pelas oito, chegaria a Enfermeira.
Como de costume, o
barulho dos pássaros tinha precedido o surgir da luz. Quase tinham conseguido sobrepor-se
ao relógio, mas no fim este vencera.
Um, dois, três,
Um, dois, três.
Custava-lhe respirar. Sabia
a dor, do seu corpo apodrecido, apenas amortecida pela morfina.
Nos últimos dias, os
seus últimos dias, tinha tentado escrever o que fora a sua vida no caderno moleskine
que lhe deixara o Luís. Precisava de um epílogo que queria e não queria
encontrar. Quando o fizesse, ia descansar, mas depois não havia mais nada. Despedira‑se
de todos os que lhe importavam, deixara todos os assuntos resolvidos.
Já escrevera sobre a
doença, o abandono e solidão que sentia, e a morte anunciada que não conseguia
mais adiar
Sabia agora que todas
as horas em que por cobardia se tinha afastado, revividas em cada um dos vinte
e três capítulos que penosamente descrevera no moleskine, tinham sido as suas
horas perdidas.
Procurou refúgio nas
memórias mais antigas, quando tudo parecia possível, no abrigo dos abraços dos
seus pais, quando era criança, ainda vivos e jovens, no encantamento do seu primeiro
amor.
Deixou de ouvir o “um,
dois, três”.
Sorriu e soube depois
que morria.
Ou
Os Entes Queridos
Do destino dos personagens mais queridos tratámos no
capítulo anterior, resta a velha menina, a eterna guardiã dos valores
familiares. A mulher que nunca dobrava, nem modificava os seus julgamentos dos
outros e jamais voltava o espelho sobre si própria. A velha menina iniciara um
estranho processo de encolhimento lento; no espelho em casa, nos reflexos das
montras, nas câmaras de vigilância, revia-se cada vez mais pequena. Por outro
lado, os murmúrios do vento transformavam-se em vozes, ouvia os entes queridos
a repetirem velhas máximas, mais tarde conseguia mesmo conversar com os
desaparecidos. A casa estava a ficar com menos espaço para ela, os entes
queridos ocupavam os seus lugares favoritos e divisão após divisão ficava
cerrada para ela.
Aqueles que fora tão pronta a julgar e a condenar
tornavam-se insubstanciais, sombras sem importância, que não lhe faziam falta.
Caminhava nas ruas e as vozes começaram a acompanhá-la. Pouco falava com os
lojistas, vizinhos, conhecidos de anos. O tempo perdia o seu poder, luz e
sombra, os dias perdiam a individualidade. A limpeza da casa já não lhe
importava, as refeições aconteciam quando se lembrava, o seu aspecto físico já
não era importante agora que estava a tornar-se tão minúscula.
De vez em quando saia para trazer provisões, grandes
sacos pesados que arrastava para dentro da cozinha. Até que chegou o dia em que
carregada com aqueles tropeçou num tapete e caiu, a perna fez um som estaladiço
insuportável, perdeu a consciência e quando abriu os olhos descobriu-se imóvel,
fundida aos mosaicos do chão da cozinha, mas não teve medo porque as vozes dos
entes queridos a confortavam, embalavam enquanto lentamente se dissolvia…
A imaginação e a criatividade da Gábi à solta.
ResponderEliminarComo sempre, muito bom!
Beijinhos
Muito obrigada Pedro, mas eu só escrevi o primeiro :)
ResponderEliminarum beijinho
Horas Perdidas.
ResponderEliminarBeijinho, Gábi.