Seguindo o link que consta no Post 4305 para a página no Facebook descobri que o prazo terá sido prorrogado para dia 19.
Entretanto, e antes de ter ido reler o regulamento da participação estive a escrever nos últimos minutos do dia, mini-conto para participar...(fui "enganada" se o tivesse visto antes, poderia ter adiado para os últimos minutos do dia 19).
Entretanto, e antes de ter ido reler o regulamento da participação estive a escrever nos últimos minutos do dia, mini-conto para participar...(fui "enganada" se o tivesse visto antes, poderia ter adiado para os últimos minutos do dia 19).
É
mentira!
Ana
nunca diria uma mentira. Simplesmente não fazia parte do seu carácter. Podia às
vezes ficar calada, mas mesmo assim fá-lo-ia para não ofender. “Está boa a
sopa?” perguntava-lhe a tia em experiências culinárias quando lhe tinha pesado
a mão no sal. Este vestido é que me faz gorda, afirmava a amiga que se perdia
nos bolos. Ana não dizia nada ou mudava de assunto. Nisso tornara-se perita. Esta
sopa tem algo de diferente, o que é? Perguntava à tia. “Arranjei uma receita
nova para um bolo de chocolate” partilhava com a amiga. Se nada resultasse e fosse
muito empurrada contra a parede, aí tinha de dizer a verdade. A sopa está intragável
de salgada e não é o vestido, és tu, estás gorda. Esta forma de ser tinha-a
isolado. Quando se trata de verdades desagradáveis que as afectem, e mesmo que não
o reconheçam, as pessoas não costumam gostar de quem as diz, sobretudo se não
foram disfarçadas com alguns rebuçados: “sabe que é boa cozinheira mas esta
sopa está um bocadinho salgada” ou “gosto muito de ti, mas estás um pouquinho
gorda”. Mas nem disto ela era capaz. Não achava que a tia fosse boa cozinheira,
a sopa não estava um bocadinho mas horrivelmente salgada, e não gostava muito
da amiga, nem esta estava só um pouquinho mas visivelmente mais gorda.
Assim,
não era de todo popular, antes pelo contrário, e porque ela quereria que se
escrevesse aqui a verdade, tornou-se foi bastante solitária.
Também para
arranjar emprego foi complicado. Não o conseguiu em lojas em que contactasse
com os clientes, nem em fábricas nas quais tivesse de elogiar o encarregado. Só
conseguiu arranjar serviço em limpezas e mesmo aí, em casas de doutores que
passavam o dia fora. Abriam-lhe a porta antes de saírem para os seus empregos,
deixavam-lhe o pagamento no sítio combinado. Quando terminava, saía e fechava a
porta. Apenas havia tempo para lhe darem algumas instruções e corria tudo na
ordem.
Não conseguiu ter um namorado. Talvez fosse por não se ter
verdadeiramente apaixonado nunca. Era bonita, clara e alourada, alta para a
média e para o magro. Recebeu muitos convites. Aceitou alguns. Se lhe vinham
com mentiras, dizia-lhes logo para pararem com aquilo. Não queria que lhe
viessem dizer como “desde o primeiro momento fiquei logo caído por ti” quando
sabia que primeiro ele tinha convidado a Suzete que era muito extrovertida, ou “és
a mulher mais bonita que já vi” e então, nem que fosse só por isso, ele não via
televisão, não ia ao cinema? E não era capaz de lhes dizer nada parecido.
Quando lhes cortava as tiradas, alguns decidiam ser mais directos, confundiam a
sua franqueza com experiência de vida, imaginavam que pudesse querer o mesmo
que eles, avançarem na relação para a intimidade física. Mas ela não era capaz,
não tinha experiência, só alguma curiosidade, e já chegara à conclusão que
aquele não era o tal, se é o que tal existia. Em resultado, tinha tido muitos
primeiros encontros, mas raramente segundos e nunca terceiros. E os anos iam passando.
Ana continuava só e orgulhosamente verdadeira.
Até
que um belo dia, aliás, não tão belo assim, porque choveu muito, conheceu o
Paulo.
Foi por intermédio de uma sua cliente, grande amiga duma tia ou tia-avó
dele. Arranjaram-lhe o serviço. Combinaram que iria lá todas as terças-feiras
de manhã, o horário que ela tinha livre, fazer a limpeza. Até aí, tudo muito
parecido com o que se passava com outros serviços, embora ele vivesse sozinho,
e tivesse sido a tia que tratou de tudo. O Paulo era professor, só que naquele
ano, não tinha aulas nas terças de manhã. Abria‑lhe a porta quando ela chegava
e não ia embora. Ficava por ali. Perdido na preparação das aulas, na correcção de
testes ou a estudar matemática porque estava a tirar o doutoramento.
Correspondia à imagem que ela tinha de um génio. Absorvido em grandes questões,
desligado das decisões do dia-a-dia. Fechava-se no quarto, quando ela aspirava
a sala, voltava para a sala quando ela ia lavar a cozinha. Reparou que ele
almoçava apenas uma sandes. Passou a trazer pão fresco, legume e a fazer-lhe
sopa. A certa altura ele começou a falar-lhe das aulas e dos alunos. Só
descrições, às vezes engraçadas, outras dramáticas. Começou a almoçar com ele,
porque o Paulo insistiu. Sem se aperceber, terça-feira passou a ser para si, o
melhor dia da semana, e sem ela o saber, para ele também. E um dia, o Paulo
beijou-a. Não lhe disse que estava caído por ela desde que a vira ou que era a
mulher mais bonita do mundo. Simplesmente beijou-a, entre enunciações de
questões matemáticas e descrições de aulas, beijou-a, e ela gostou. Foram-se aproximando mais e de uma forma física. Passaram a ter a
intimidade física que a deixava antes só curiosa e pela primeira vez ansiosa.
Na sua primeira vez não sangrou. Não lhe disse que era a sua primeira vez, não
soube se ele se apercebera. Passou a vir ter com ele à noite. Fazia o jantar.
Dormiam na cama do quarto que ela arrumava. Trouxe roupa e objectos seus. Ele deu-lhe
um duplicado da chave. Contudo, não falavam do que sentiam, do que se passava entre
eles, do que queriam para o futuro. Ana pensava ou pensou depois porque ao
olhar para trás, o tempo naquela época parece ter voado, e não se reconheceu a
si própria nas atitudes que então teve, que estava bem porque ele não lhe
mentia. Mas será que não? Ao aproximar-se o Natal, o Paulo comentou que iria
viajar para o passar em casa dos pais na aldeia. Ana não disse nada. Foram só
três dias. O Paulo foi embora no dia 24 e regressou no dia 26, mas foram os três
dias mais solitários da vida da Ana, mesmo tendo passado o Natal como
habitualmente com a sua família. Nessa altura pensou no que estava a fazer, no
que existiria entre eles, se teriam ou não futuro os dois juntos, e pela
primeira vez pensou que uma mentira poderia tê-la confortado. Se ele lhe
tivesse dito, antes de partir que a amava, ela ia querer acreditar. Essa ideia
durou só alguns segundos, porque logo de seguida lembrou a si mesma que ela
nunca mentia, nem iria mentir a si mesma. No dia 26, que por coincidência era
terça-feira, estava na casa dele, quando o Paulo chegou. Completamente
ignorante da dolorosa imensidão que tinham sido para ela aqueles dias,
abraçou-a, como se não vissem apenas há poucas horas, enquanto comentava que
estava com fome e lhe perguntava se havia sopa. E havia. Os dias foram
continuando como se nada se tivesse passado. Todavia, a Ana estava diferente.
Pensou que aqueles três dias a tinham mudado. Não se reconhecia. De manhã podia
sentir-se feliz, mas chegava à noite a sentir-se desgastada com a vida. Via-se
mais pesada. Tão depressa estar com o Paulo a atraia como a repelia, e o
esforçar-se por disfarçar tudo isso, fazia-a pensar que estava próxima de mentir.
Ficou tão absorvida no seu convulsionado e estranho sentir que foi o Paulo o
primeiro a perceber o que se passava. Ana estava grávida. Ele perguntou-lhe há
quanto tempo não tinha o período. Meio chocada por ele lhe fazer essa pergunta
apercebeu-se então que há dois meses que o não tinha. Mas o mais surpreendente
veio depois. O Paulo ficou feliz. Levou-a à primeira consulta da confirmação.
Disse-lhe que tinham de celebrar e casar. Casar. Ana tinha e não tinha pensado
nisso. Queria tê-lo no seu futuro. Pareceu-lhe que estava certo e casaram. No
civil, somente com alguns familiares, os pais dos dois, que até se pareciam, a tia-avó
um pouco chocada, essa parecia mesmo ter sonhado para o sobrinho um casamento “melhor”
com uma doutora, sem dúvida, mas ninguém lhe perguntou nada.
O tempo foi
passando. Deixou de trabalhar em outras casas, passou a cuidar apenas da casa
que agora também era sua. Falavam do que faziam. O Paulo queixava-se de alguns
dos seus alunos, descrevia-lhe problemas matemáticos que ela não compreendia. A
Ana guardava todos os episódios que lhe pareciam interessantes para lhe contar
no final do dia. As tiradas com piada dos vendedores da praça, reclamações de
clientes, o rapazinho que tinha roubado uma abóbora. O dono foi atrás dele,
apanhou-o e deixou-o ir. Parecia um homem duro, mas teve compaixão, disfarçou,
dizendo que ele lhe fugira. A sua barriga ia crescendo. Sentia os movimentos.
Já sabia que ia ser uma menina. Numa terça-feira, depois do jantar, sentiu-se
enfartada. Foi-se deitar, mas a indisposição não passava e aí começou a ter as contracções. Chamou o Paulo quando se sentiu molhada. Foram para o Hospital e a
dor aumentava, vinha como vagas, crescia quase a parecer-lhe insuportável,
concedia-lhe alguns momentos de alívio e logo regressava. A bebe era pequenina
e quando pensavam dar-lhe a anestesia, começou a sair. A dor cresceu de novo,
até chegar o maior alivio e ouviu o seu choro, mais uns gemidos baixinhos.
Levaram-na para a limpar e ela adormeceu de exaustão. Horas depois foi o Paulo
que lhe trouxe a bebé. Colocou-a com todo o cuidado no seu colo. Era
vermelhusca e careca. O Paulo olhou para ela e disse “é a menina mais bela do
mundo”. E então, a Ana, que nunca tinha dito uma mentira, respondeu-lhe, “é,
sim”.
O conto é excelente, Gábi!!
ResponderEliminarE isto não é mentira.
Beijinhos e votos de bfds
olha que lindo.! nunca me lembraria de uma "mentira" assim. corroboro o comentário "o contexto é excelente"!
ResponderEliminargostei mesmo. bom fim de semana.
Obrigada Pedro Coimbra :)
ResponderEliminarum beijinho e bom fim-de-semana também :)
Obrigada Desabafosemrodapé :)
um beijinho e bom fim-de-semana também