terça-feira, maio 04, 2021

Campeonato Intensivo de Escrita Criativa 3/4 - Conta-me o que me fizeste

 Conta-me o que me fizeste.

 

 

Não sabia muito dela. Nem quis saber, enquanto foi viva.

Uma mulher gasta e perdida. Comprei-a para uma noite e seguiu-me. Foi ficando pela minha casa, usava-a e dava-lhe o que ela queria, álcool e drogas.

Uma noite em que pensei que dormia, apanhei-a a ouvir o que não devia. Ela percebeu o seu erro, mas eu não podia confiar numa vadia. Aposto que venderia a própria mãe por uma dose. Disse-lhe que estava tudo bem. Quando ela se virou, talvez para fugir, espetei-a. Matei-a, ou julguei que o tinha feito.

Larguei o seu corpo no monte. Por ali havia javalis, e com sorte iriam comê-la. Acreditei que nada dela sobrara, nada mais nos ligava. Algum tempo depois, um agente chegou a vir falar comigo. Tinham participado o seu desaparecimento. Pelos vistos, ainda haveria alguém que se importava com ela, mas sem rasto, nem corpo, arquivaram o caso.

Anos mais tarde vi-me a morar só e inválido nesta mesma casa, e foi quando ela voltou.

Estou velho e doente. Antes tive algum poder, fui temido. Hoje mais do que odiado, sou desprezado. Não há ninguém que possa chamar, ninguém que viesse por mim. Arrasto-me pelas escadas e quartos. E ouço a sua voz:

- “Conta-me o que me fizeste.”

Quando adormeço, sinto-a a rondar-me, perto. Quer levar-me para o Inferno de onde saiu.

Pressinto a morte próxima, assim como ela.

Acordei nauseado e com dores, nos braços e pernas, que sangram e não me obedecem.

Via-a. Estranhamente, parece mais velha. Também os fantasmas envelhecem. Repete na voz que reconheço:

“Conta-me o que me fizeste.”

Se o disser, talvez me deixe em paz.

Balbucio: Cortei-te a garganta e larguei-te no bosque.

Ela aproxima-se, na mão direita traz a faca com que me cortou e me vai espetar, na mão esquerda, um papel.

Sinto a lâmina fria no pescoço, olho e vejo que o papel é uma fotografia de duas miúdas iguais, gémeas.

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