sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Post 6554 Desafio de Escrita 2/10 - Famílias


 Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.
Ou talvez me pareçam apenas igualmente felizes as famílias que desconheço porque se me aproximo, descubro as suas desgraças, pressinto os seus sórdidos segredos. Infelizes à sua maneira, iguais na desgraça.
Não tenho memórias da minha mãe. Dela restava em casa um único retrato, relegado para um lugar escondido e escuro da Biblioteca, apenas poupado a armazenamento no sótão ou à destruição, por ser de um pintor famoso. Olhava-me bela, desafiadora e desconhecida. Não parecia maternal, não a conseguia ver como uma mãe, a minha mãe, do meu irmão, ou de quem fosse.
Cresci numa casa fria, na qual não havia espaço para demonstrações de afecto, pensando que a culpa era minha, que não merecia ser amada. Só mais tarde vim a saber que aqueles que acreditava serem pai, avó e tias, não o eram, e inclusive o meu indiferente irmão mais velho era somente meio-irmão. A nossa mãe deixou o marido e o filho por uma paixão, e desta, apenas sobrei eu. Ela morreu – cobardemente atirou-se para debaixo de um combóio, e ele, o meu pai biológico, não me quis, entregou-me à família do marido traído. Não sei como me acolheram. Talvez esperassem que me pudesse vir a parecer com ela para se vingarem então em mim do que já não podiam fazer-lhe a ela. Não tiveram sorte. Cresci parecida com o traidor sem a beleza da minha mãe, e ainda mais detestada por isso. Tornei-me perita na imobilidade e silêncio para passar despercebida enquanto desenvolvia as minhas capacidades de observação. Assisti a paixões efémeras, vi como mesmo em casamentos combinados, especialmente as mulheres, se iludem, atraiçoam e decepcionam.
O meu falso pai quer casar-me.
Eu quero viver! Sem famílias.


1 comentário:

  1. Gostei de ler, Gabi. Continuo a pensar que escreve muito bem.
    Abraço e bom fim-de-semana

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