quinta-feira, janeiro 22, 2009

A Ira

Por vezes pensava que dentro de si existia um monstro irracional e sem contemplações, capaz dos actos mais violentos e inconsequentes. A recordação de momentos no passado nos quais, passe a expressão, tinha perdido a cabeça, felizmente há bastante tempo, levava-o a ser ainda mais controlado do que já seria normalmente. Expiava em si qualquer palavra ou acto que pudesse revelar primeiro emoções negativas e depois quaisquer emoções. A ideia de que o vissem como profissional, competente, racional, envaidecia-o, fazia com que sentisse bem consigo mesmo e incentivava-o a prosseguir por esse caminho. Nada de manifestar emoções no trabalho e nada também de o fazer em família. Estava casado há mais de vinte anos e não tinham tido filhos. A mulher cuidava da casa, fazia a comida, lavava-lhe a roupa, ele dava-lhe parte do seu vencimento para as despesas da casa. Às vezes, aos Domingos iam almoçar fora e nas férias iam passar quinze dias na praia com um casal amigo. Nem se lembrava da última vez em que poderiam ter falado um com o outro de uma forma mais apaixonada. Tinha como assente que ela sabia que para continuarem juntos era porque a aprovava. Pensou por instantes na palavra que tinha escolhido, aprovava. Poderia ter dito porque gostava dela, mas isso das paixões e da expressão do amor e afectos parecia-lhe coisa de miúdos. Na última vez que perdera a cabeça, estava a fazer quinze anos, tinha sido por causa de outra mulher. Tudo começara com um flirt. A Ivone trabalhava lá na empresa, no departamento do secretariado. Apenas notara que calhava encontrarem-se muito, quando ia tomar um café ou tirar fotocópias, porque um outro colega lhe chamou a atenção. Resolvera ver até onde aquilo podia ir. E de repente percebeu que tinha ido longe demais. Primeiro os almoços com outros colegas, mas em que se sentavam perto um do outro, os olhares e os toques acidentais. Depois num dia ficaram os dois até mais tarde, como se estivessem combinados. Quando todos saíram foi ter com ela e aconteceu. Caiu logo em si, mas ela estava cheia de ideias. Não percebia que tinha sido um momento infeliz. Não queria perceber. Primeiro chorou, depois recompôs-se e no dia seguinte, lá na empresa, estava pronta para começar a fazer-lhe a vida negra. Continuou "calhar" a encontrá-la, mas agora acompanhada por outra ou outras, com segredinhos e risos parvos.

5 comentários:

  1. A tua personagem parece quase real. Li o texto num fôlego, sempre à espera da tal explosão mas a ira latente estava bem controlada.

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  2. Que cabras... Um homem tão certinho e deireitinho e elas a fazer-lhe a vida negra, heim?
    Isso não se faz. Ah, mas elas vão ver com quem se meteram, não é?
    Vá lá, venha de lá esse touro enraivecido :)

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  3. Causa uma grande ira, o riso e os segredinhos dos outros.
    A história vai continuar?

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  4. Obrigada Bell :)



    Pois, Eira-Velha, até parece que fiquei com pena delas, não? :)


    É para continuar, sim Gigi :)

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  5. gostei bastante. espero que continues.
    beijo

    fiquei triste por não ver a foto!!

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