sábado, maio 25, 2019

Post 7081 - Desafio de Escrita 3/10 Os sonhos não servem para nada


“Os sonhos não servem para nada. Não te enchem a barriga quando tens fome.”
Depois da afirmação o homem pousou a caneca na mesa. Não era decididamente um velhote igual aos autos. A barba crescia-lhe em tufos grisalhos, pouco cabelo e demasiado comprido, roupa desirmanada, mas a voz profunda e o tom assertivo revelavam outra idade, outra vida.
Falava mais para si mesmo e na taberna meio vazia ninguém parecia escutá-lo.
Àquela hora só almas perdidas por ali paravam.
E eu seria mais uma, mas ouvi-o.
As suas palavras traduziam estranhamente o que sentia e me levara ali para uma bebida.
Nos últimos tempos, quando olhava para trás, via só o que falhara na vida e afundava-me na maior miserabilidade.
Tentei lembrar os sonhos que tive ao longo da vida. Evoluíram enquanto crescia, da bicicleta ao sucesso, à felicidade, cada vez mais inatingíveis e impossíveis, até que deixara de sonhar.
Mas naquele momento procurei recordar o que sentira quando o meu pai me trouxe a bicicleta, com o selim vermelho e as quatro velocidades que me pareciam todas iguais.
Não descansei até conseguir andar nela sem cair. Melhor do que tinha sonhado porque real. A partir dela construi outros sonhos dos sítios onde queria ir. E a alguns, fui.
Não serão os sonhos que não servem para nada, mas os sonhos vazios, falhados.
Os sonhos não te enchem a barriga, mas podem encher-te a alma.

Queria dizer-lhe isso mas quando olhei em volta apercebi-me que ele já lá não estava.
Não acabei a bebida que pedira, paguei-a e saí
Não voltei a vê-lo. Poderia não ser real, poderia tê-lo imaginado. Lembro-me dele às vezes como me lembro que devo continuar a sonhar.

1 comentário:

  1. Gostei muito deste texto. Já dizia o professor poeta que o sonho comanda a vida. :)

    ResponderEliminar