terça-feira, março 28, 2017

Post 6118 - Desafio de Escrita, 2/10 Rir e chorar

Um, dois, três, fecho os olhos e recuo no tempo.
Paro no dia em que comecei mesmo a reparar nele. Entrei na lojinha da aldeia em que vivíamos. Ele estava lá a substituir a mãe, e fez um ar muito atarefado a abanar um mata-moscas.
Não resisti a colocar-lhe uma pergunta tonta:
- O que estás a fazer?
- A matar moscas, já foram cinco, três machos e duas fêmeas!
- Mas como é que consegues distingui-las?
- Fácil, três estavam na garrafa de cerveja e duas no telefone…
Sabia que ele gostava de mim mas só lhe dei uma oportunidade a seguir àquela piada pateta de que rimos os dois.
Dez anos passaram. Namorámos, viemos viver juntos para a cidade, conversámos sobre casar, fazer a festa, ter filhos… até ao dia em que lhe surgiu um sinal diferente ao qual devia ter dado importância, e não deu.
Depois, ele continuou a fazer-me rir, entre tratamentos, internamentos e cirurgia.
Viu-o emagrecer, perder o cabelo, o apetite e o fôlego, mas não o sorriso que guardava para mim.
E eu tentava esconder-lhe o meu medo.
Não fizemos mais planos para além de hoje ou amanhã. O tempo parou no hoje, no agora.
Um, dois, três, regresso ao presente.
Chegou a vez de ser atendido e entramos os dois para a consulta.
Dou-lhe a mão enquanto esperamos.
Está demasiado calor ali, ou eu devia ter tirado o casaco. O seu médico está na sala ao lado, ouvimos a sua voz, fala com alguém ao telefone.
Entra com os resultados e de repente tenho frio. Diz-nos para nos sentarmos. Ele também se senta, poupa os papéis na secretária, olha para nós e diz “está em remissão.”
Um, dois, três.
O tempo volta a correr como antes. Pela primeira vez, choro à sua frente.

7 comentários:

  1. Maravilhosa crônica! É um texto muito bem composto, onde a simplicidade, criatividade e esmero existem. Curto, mas com começo, meio e fim extraordinários em que tudo diz pouco e o pouco diz tudo em a evidência da mensagem. Mas creio ter entendido e o alívio de uma remissão no sentido de apagar nossos pecados ou expor que estamos livres da moléstia é uma graça de Deus que não entendemos e procuramos buscar explicações racionais. Parabéns! Você escreve muitíssimo bem. Abraço fraterno. Laerte.

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    1. Muito obrigada Silo Lírico por ter lido e pelas palavras
      um beijinho
      Gábi

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  2. Respostas
    1. Mas ele vai ficar bem, LopesCa, não gosto nada de matar os personagens que invento :)

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  3. Que bom!...
    Um final feliz!...
    Adorei o texto! Beijinhos
    Ana

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  4. Obrigada Ana por teres lido e por comentares :)
    um beijinho
    Gábi

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