quinta-feira, junho 30, 2016

Post 5728 - 7/10 Era uma porta enferrujada.

Era uma porta enferrujada. E ela entrou.
A velha casa esperava-a.
Lençóis cinzentos cobriam os poucos móveis que restavam.
Pelas janelas emperradas a luz que entrava revelava partículas de pó suspensas no ar, coloridas pela luminescência que reflectiam, e recortava estranhas sombras à frente dos seus passos.
Ali tinha sido feliz.
Fizera seu aquele espaço, a antiga casa do caseiro, com a autorização dos tios, donos da propriedade. Dissera-lhes que ali poderia estudar para os exames sem que as brincadeiras dos primos, a distraíssem.
No final da manhã com a merenda e os livros ia para lá. Talvez quisesse fazê-lo para tornar o pretexto verdadeiro, mas não conseguia estudar. Só esperava.
Esperava por ele, o seu primeiro – então acreditava único – amor. Quando ele chegava, o tempo parava. Perdia-se nos seus abraços e beijos, cada vez mais íntimos e inebriantes.
A febre que a percorria, impediu-a de ver que cresciam as suspeitas pelas suas estranhas ausências.
 Uma tarde foram surpreendidos. Os dois enrodilhados na cama e despidos, quando o tio e o avô entraram por ali dentro. A vergonha deixou-a muda e ele não a ter defendido, decepcionou-a.
Voltou corrida para a casa dos pais. Não houve mais férias na aldeia com os tios. E cresceu.
Atrás de si toda uma vida. Um casamento, dois filhos, um divórcio. Os avós e tios já tinham morrido. Foi preciso tratar das partilhas e regressou à aldeia. Decidiu ligar‑lhe. Tinha já compreendido que na altura também ele tão jovem.
Quando ele atendeu, não lhe reconheceu a voz. Disse-lhe quem era e que queria vê-lo. Ele ficou algum tempo em silêncio. Ela até pensou que a chamada tinha caído. Depois combinou o encontro ali.
Tantos anos depois, de novo esperava por ele. Sem saber se viria.
Até que ouviu passos e eram os passos dele.

2 comentários:

  1. Tantos anos depois e o número do telefone dele ainda era o mesmo. Que bom!

    Quem sabe a velha porta enferrujada, após ser bem lubrificada, ainda pudesse ser aberta muitas e muitas vezes?
    Tomara que ela não se desiludisse. Os anos modificam tanto as pessoas...

    Beijinho e parabéns pelo texto, Gábi. Gostei muito.

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  2. Pois, não tinha pensado nisso, nem como é ela se lembrava do número e tudo :)
    obrigada Janita por teres lido e pelas palavras.
    um beijinho

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