quarta-feira, janeiro 27, 2016

Post 5423 - 08/10 Sentir



Céu cinzento, no meio do campo, perto da aldeia, mais do que o incêndio para os que ali moram, o acontecimento é estar lá a televisão. Estacionaram a carrinha com o símbolo do canal, um senhor tirou de lá a câmara, e à sua frente, a jovem jornalista de saltos altos, depois de falar com o chefe dos bombeiros, elegeu-a para ser entrevistada:
- "Estamos aqui com a filha dos proprietários"
Teve de corrigi-la:
- "Prima da amiga da filha, mas a minha prima há anos não fala com ela"
A jornalista interrompeu-a:
- "Então como é se sente ao ver a casa a arder?"
Sentir, ou não sentir, não sabia bem o que deveria sentir para lhe dizer, mas antes de começar a falar, a jornalista insistiu:
"Sente-se mal?"
E aí já pôde responder:
- "Sinto-me muito mal porque eles tinham gosto na casa, acho, porque nunca lá entrei”.
Atrás delas, no rescaldo do incêndio vê-se a porta e as paredes enegrecidas da velha casa. Rebentaram os vidros da janela, mas de resto aparentemente mantém-se sólida.
Um bombeiro a recolher a mangueira faz-lhes sinal para recuarem, recua o senhor que segura a câmara, recuam ela e a jornalista que tropeça, mas não cai e prossegue determinada:
- “Eles tinham coisas de valor aqui, era?"
- “Deviam ter, sabe,  mas já não vinham há muitos anos porque estão na França”
 - “Como é que eles se vão sentir com isto?
Agora ela já sabia a resposta:
-  "Vão-se sentir muito mal".
- “E na aldeia, como é que sentem?”
- “Sentimo-nos muito mal, está a ver, a casa estava aqui há muitos anos.”
Conclui a jornalista a reportagem: “O fogo na aldeia de Argodêlo deixa uma família sem casa.”
Pensa ela, está cá a casa, mas não a família.


12 comentários:

  1. Isto podia passar-se na minha aldeia, Gábi. Há dois ou três anos houve um enorme incêndio, e por entre o breu continuavam a estoirar foguetes nas aldeias vizinhas, a não mais de 2 ou 3 quilómetros. Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Minho. :)

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    1. Lembro-me de ter lido o texto em que escrevias sobre isso, aqui não estava a pensar no perigo ou na indiferença, e estava antes a tentar inventar uma mini história leve, nem quis que a família ficasse sem casa.
      um beijinho e boa noite

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  2. Uma realidade com que se confrontamos!

    Será um conto teu Gabi?

    Beijinho

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    1. É um mini-conto para um desafio de escrita Flor de Jasmim :)
      um beijinho

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  3. Uma realidade com que se confrontamos!

    Será um conto teu Gabi?

    Beijinho

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  4. Gostei tanto deste "Sentir", Gábi! Muito bom!
    Beijinho

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    1. Obrigada MariaXL por teres lido e pelo incentivo :)
      um beijinho

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Tão engraçado, pra mim que olho com os olhos de jornalista que sou, quanta coisa absurda essa minha colega fictícia falou, mas não posso negar que às vezes é desse jeitinho mesmo...ahahaha

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  7. Era o que queria escrever, algo que fosse engraçado :)
    um beijinho e obrigada por teres lido
    Gábi

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