domingo, julho 06, 2014

Post 4026 Última primeira viagem

A última primeira viagem

Setenta e dois anos, fisicamente não muito bem, mas a aguentar com alguns cuidados e desistências, de cabeça, bem, talvez bem demais para se aperceber do que se passava à sua volta. A Helga tinha morrido há mais de vinte anos, atropelada numa passadeira por um condutor embriagado. Ficou logo ali. Com sorte nem se terá apercebido. Os filhos já eram crescidos. Muito ocupados a afirmarem-se nos seus trabalhos, assim tinham continuado. Falavam-se pelo Natal e pelo Verão, mas nem se encontravam. Nunca tinham sido muito próximos. A mãe tinha sido sempre a ponte entre eles. O Rui tinha emigrado. Casara lá pela Suíça. Não tinha filhos. Já cá não vinha há anos. O Pedro, o mais novo e o orgulho da mãe, formara-se médico, com especialização em neurologia, trabalhava em Lisboa, em dois grandes hospitais. Sempre muito ocupado. Dois casamentos e dois divórcios, também sem filhos e sem tempo par vir visitar o pai. Ele ia bem, com as suas rotinas. Almoçava numa casa da esquina. Conhecia o dono. Duas vezes por semana, a Dona Maria vinha fazer-lhe a limpeza da casa. Também lhe fazia sopa uma vez por semana, mas a durar pelos sete dias. Era o seu jantar. Antes tinha o hábito de a seguir ao jantar passar pelo café da vila. Pouco a pouco deixou de o fazer. Os rapazes do seu tempo morreram ou os filhos puseram-nos num lar na cidade vizinha. Apercebia-se do sozinho que estava, mas ia fazendo a sua vida. Até que um dia, ao jantar, a seguir à sopa, comeu um pouco de pão com queijo e vinho. E não lhe caiu bem. Resolveu ir deitar-se mais cedo. Apesar das insónias, pelo menos na cama estaria quente. Assim pensou, o fez. Vestiu o pijama, meteu-se na cama e apagou a luz. Não encontrava posição. Sentiu-se gelado e percebeu que estava com suores frios, o pijama colava-se-lhe ao corpo magro. Algo lhe apertava o peito e o escuro do quarto pesava-lhe, não havia barulhos, televisão, vozes ou trânsito. A aldeia, meio vazia era tranquila. Mas naquela altura, o silêncio surgiu-lhe como ruidoso, parecia-lhe que ouvia o sangue a correr-lhe na cabeça, o coração a bater-lhe no peito. O peso no peito passou a dor que lhe subia também pelo braço e parte de si percebeu. Devo estar a ter um ataque. Aqui sozinho quem me vai valer. Será que consigo chegar ao telefone? Ainda não. Mesmo a minha vida não sendo muito, é cedo ainda. Não me despedi dos meus filhos. Não preparei nada. Não se conseguia mover, o latejar na cabeça, a dor no peito aumentavam e aumentavam, não conseguia respirar e tudo começou a ficar ainda mais escuro e sentiu-se a cair. Perdeu consciência.
Começou a sentir que despertava, como no Domingo ou no primeiro dia de férias quando era garoto e sabia que podia continuar na cama mais algum tempo, sentia os lençóis quentes e o travesseiro fresco, a luz a chegar-lhe pelo que pensou primeiro serem as fresta da persiana e no ar cheirou o pão acabado de cozer e o café. Pouco a pouco foi-se lembrando. Não era jovem há muitos anos, a sua casa de infância já nem existia e a sua mãe, que cozia o pão e fazia o café também já tinha morrido há quase tanto tempo quanto aquele em que deixara de ser jovem, passara a ter responsabilidades, trabalho e família a seu cargo. Depois foi-se lembrando de onde estava no que lhe parecia ser ontem. A Helga tinha morrido, os filhos estavam longe e ontem tinha pensado que morria. Ficou com receio de abrir os olhos. Será que tinha morrido mesmo, ou estaria num hospital? Decidiu-se a abri-los e a luz primeiro não o deixou ver nada. Tudo lhe parecia branco. Foi-se habituando à luz e apercebeu-se que não estava deitado como pensara primeiro, mas sentado, sentado num banco branco num compartimento como a carruagem do comboio também branco, sem janelas, com bancos dos dois lados, vazios. Não via o início ou final, não via mais ninguém por ali, nem se apercebia de onde via a luz e sentiu que estava em movimento, e não seria só pela sugestão da comparação com o comboio. Quase conseguia sentir as curvas e alguns ligeiros estremecimentos, tal qual como num comboio. Pensou onde estou e resolveu dizê-lo, ouviu a sua voz que soava como a sua voz. Levantou os braços. Olhou para as suas pernas. Estava vestido com uma espécie de pijama, mas as suas mãos não eram mais as de um velho, reconhecia-as como tinham sido há muitos anos. Isto não deve ser um hospital. Não conheço nenhum que seja assim. E não faria sentido uma droga ou um sonho tão real e tão estranho. Portanto devo ter morrido e estou a ir para algum lado. Continuou intranquilo. Pensou, não fui um homem mau, mas também não fiz nada de bom. A Helga era o que havia de melhor em mim. Nunca se zangaram com gravidade, nunca se separaram, nunca trocaram palavras duras. Seguia as sugestões dela também quanto ao que fazia pelos outros. Se dava algo a alguém que precisava, mesmo que ainda não o tivesse pedido, tinha sido a Helga a lembrar-lhe dos problemas que o Lopes ou a D. Ana estavam a passar.  E também era perante ela que ajuizava o que era importante. O que lhe contavam no trabalho ou no café, era quando no final do dia conversavam que se apercebia. Não era simpáticos troçaram do Nabais porque gaguejava e o colega que abdicara da promoção para cuidar da mãe doente, não era o palerma que desperdiçava uma oportunidade, mas um bom filho.  Eram felizes, sem que o soubesse. Costumava pensar em como tinha sorte quando assistia ou lia sobre problemas entre outros casais. Costumava pensar que tinha sorte até ao dia do acidente. Agora e ali pensou se estaria a viajar para o céu ou para o Inferno, se poderia reencontrar a Helga. Desejou como nunca ter sido melhor. Ter estado à altura de merecer encontrar-se com ela. Então, com um estremecimento, aquela espécie de vagão parou. À frente, ouviu uma porta abrir-se e mais luz entrou por ela. Levantou-se e avançou na sua direcção. Alguém entrou. Um vulto, mais baixo que ele, também com um pijama branco, mas a luz não deixava que lhe visse o rosto. Veio ter com ele, e quando estava mais perto, percebeu que era a Helga. Mais jovem, os olhos azuis doces, sem rugas, ela sorriu-lhe e disse-lhe, com uma voz que lhe soou como a sua: "Ainda não". E nesse momento, quando o que mais queria era ficar ali e abraçá-la, sentiu-se de novo cair. Voltou o peso no peito, sentiu que lutava para respirar, a escuridão fechou-se sobre si. Quando despertou de novo, ganhou rapidamente consciência, identificou os sons à sua volta como os de um hospital. Olhou à sua direita e viu o Pedro a segurar-lhe a mão. "Pai" ele disse-lhe. Parecia tão mais velho desde a última vez que tinham estado juntos e parecido com a mãe. Deve estar também a chegar aos cinquenta, a idade que a Helga tinha quando morreu. Firmou os seus nos olhos azuis do filho e disse-lhe "ainda não". E pela primeira vez desde há muito tempo, tanto que nem saberia quanto, soube que estava feliz, por estar ali, e porque sabia um pouco mais sobre a viagem que o esperava, que não seria a última, mas como a primeira, como sempre acontecia quando de novo se encontrava com a Helga.

2 comentários:

  1. Nunca sabemos quando é a última viagem e dificilmente estamos preparados para ela.

    Muito bem contado, Gabi. :)

    ResponderEliminar