quinta-feira, junho 19, 2014

Post 3976 - 23.40 Acabei de o escrever e enviei mini-conto

Noite de Santo António em Lisboa

Mara ia com o irmão, pela primeira vez, passar sem os pais a noite de Santo António. 
Ele com vinte e um anos, ela com dezasseis.
O pai proibira-a de ir com amigas. Não que alguma amiga se tivesse lembrado de a convidar. Desde que deixara a escola, pouco a pouco, tinha perdido o contacto com as antigas colegas, e nunca tinha sido muito próxima de nenhuma.
Normalmente ficavam em casa. A mãe assava as sardinhas num fogareiro na varanda. A casa ficava cheia de fumo, a cheirar a sardinhas, mesmo no dia seguinte, e a roupa guardava o cheiro mais dias.
Ouviam o som da festa ao longe e deitavam-se cedo.
O pai não era severo, era antigo, como ele próprio dizia, e pessoas sérias ficavam em casa à noite.
Pouco a pouco, o irmão começou a ter mais liberdade. Acabou a escola. Começou a trabalhar numa Oficina perto, a ajudar nas despesas em casa. O pai não lhe dizia, mas orgulhava-se do Zé. Toda a família gostava dele. Bom rapaz, engraçado, responsável. Apenas não era muito bonito, mas os pais e ela nem reparavam nisso. O Zé era o Zé. A ela diziam-lhe que era bonita, mas não lhe parecia uma qualidade, mais uma preocupação, uma razão para não poder sair sozinha. Acabou a escola e ficou a ajudar a mãe na costura. Só saia com os pais ou com a mãe. Talvez muito raramente fosse fazer umas compras, mas  só durante o dia e enquanto havia luz.
O Zé teve a ideia de ela vir com ele. Primeiro, o pai nem quis ouvir falar nisso, mas depois lá se convenceu. Ia fazer companhia ao irmão, que tomaria conta dela e deviam estar em casa antes da meia-noite.
O irmão chegou a casa da oficina, tomou um duche, mudou de roupa.
Ela estava ansiosamente à espera desde manhã cedo, com algum receio de que o pai mudasse de ideias e não a deixasse ir, mas o pai estava bem disposto e se pensou nisso, nada disse.
Saíram pelas vinte horas. Ainda havia luz e lá foram, em direcção à festa. As ruas estavam enfeitadas e cheias de pessoas. Assavam-se sardinhas e passavam-se febras pela brasa. Andaram muito, mas quem corre por gosto, não cansa. Chegaram à Av. da Liberdade, quando estavam as marchas a passar. Cantava-se, bebia-se. Lançaram fogo-de-artifício. O céu encheu-se de luzes, ecoou o barulho de estampidos, um pouco abafado pela música. Provou da água-pé que o irmão arranjou. O irmão encontrou amigos, apresentou-a. Rapazes e raparigas um pouco mais velhos que ela. A certa altura afastou-se um pouco, para conversar com uma Paula, uma rapariga baixinha, de cabelo escuro aos caracóis, com um riso bonito. O Zé parecia gostar da Paula. Mara sentiu-se a fazer de pau de cabeleira e deu uns passos na direcção aposta. Distraiu-se com os foguetes, uns grupos animados passaram por ela e quando olhou já não viu o irmão. Avançou até onde tinha a ideia de o ter visto antes e ele já lá não estava. Não o via em lado nenhum. Chamou "Zé", mas com tanto barulho à sua volta, mal ouvia a sua própria voz. De repente a noite começou a parecer-lhe estranha. Não sabia onde estava, à sua volta, só rostos de desconhecidos, animados e ocupados uns com os outros. Havia homens que reparavam nela, mas não gostou dos olhares deles, como diria a mãe, não lhe pareciam sérios, de rostos vermelhos pela cerveja e vinho, alguns da idade do pai, olhavam para ela de uma forma que a fazia sentir, sem saber bem porquê, um pouco suja. Não quis que percebessem que estava perdida e se tinha visto sozinha.  Se os apanhava a olhar para ela, fazia de conta que ia ter com alguém que conhecia, passava por eles e deixava-os para trás, mas cada vez estava mais perdida. E então sentiu um olhar diferente. Não era um homem, mas um rapaz da idade do Zé, com cabelo louro e sorriso de garoto. Quando ele sorriu para ela, pareceu-lhe por um momento que tudo parava à sua volta. Ele percebeu que ela estava perdida. Veio ter com ela e Mara não fingiu que via alguém conhecido atrás dele. Ao contrário, fixou o olhar no dele. Ele chegou pertinho dela, porque era muito alto baixou-se para falar com ela e disse-lhe "o Zé está à tua procura". Depois soube que era o Pedro, um amigo do Zé que quando deixou de a ver, incumbiu todos os amigos de a procurarem. O Zé tinha-a descrito tão bem que o Pedro soube logo que era ela e se não fosse, pensou ela, quereria ser. Foi essa a primeira vez que viu o Pedro. Mais tarde ia contar muitas vezes essa história aos filhos e aos netos, a da noite em que conheceu o pai ou o avô deles.


11 comentários:

  1. Gostei. Agora fico à espera de um conto de S. João!

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  2. Uma noite de Santo António diferente e bela.
    beijo
    Graça

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  3. Muito giro..... Gostei muito!!!

    Parabéns menina Redonda.....




    Pizza boy

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  4. Obrigada Graça Pereira :)
    um beijinho




    E então Pizza Boy não queres escrever também algum conto para um dos próximos desafios?
    um beijinho

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  5. Olá menina Redonda,


    já tinha pensado nisso, e muito a sério... O problema é que quando idealizo a história e a começo a passar para o papel .... o prazo acaba!!!


    ;)

    bj e obrigado pelo desafio

    Um eterno fã das suas escritas...

    Pizza Boy

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  6. Obrigada Numa de Letra :)
    um beijinho

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  7. :) Obrigada por teres lido e pelo comentário :)
    um beijinho
    Gábi

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